quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O Zica e o Risco da Pandemia do Preconceito

Diante do caos instalado pelas consequências incomensuráveis da picada do mosquito Aedes aegyptie e da ausência de uma percepção dos diferentes fatores econômicos, políticos e sociais que resultam em uma epidemia, corre-se o risco de se criar uma pandemia de preconceito e discriminação.
A mulher torna-se alvo preferencial de preocupações exclusivamente sanitárias em razão das consequências das doenças transmitidas pelo mosquito às gestantes. Tais preocupações ultrapassam os limites da prevenção e do cuidado com a saúde das mulheres e invadem o campo dos Direitos Humanos, focalizando a microcefalia como a grande ameaça por causar a deficiência, propalada como a maior das tragédias.
Nesse contexto, a microcefalia é apresentada como o fator de risco à população. As mulheres são interpeladas a não engravidar nos próximos anos e alertadas para a desgraça individual de ter um filho com deficiência, instalando-se uma situação de pânico e insegurança que conduz ao aborto como solução e não como uma política de saúde pública, fundamentada nos direitos reprodutivos das mulheres.
Estamos diante de uma dupla violência contra os direitos das mulheres e das pessoas com deficiência. Ignoram-se os avanços conquistados por meio das políticas de igualdade de gênero e de inclusão das pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência voltam a ser apontadas como o problema, negando-se o princípio constitucional da deficiência como parte da diversidade humana.
Após dez anos da publicação da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência – ONU/2006, ao invés de se fortalecer a concepção social e política da deficiência que assegura a igualdade de direitos e promove a inclusão, motivado pelo surto de microcefalia, promove-se o recrudescimento do estigma da deficiência que imputa ao individuo a inadequação, a anomalia, a incapacidade. Este é um evidente retrocesso ao modelo clínico superado pela Convenção que define a deficiência como um conceito em evolução e não admite a discriminação com base na condição de deficiência.
É bastante oportuno recordar que o modelo clínico da deficiência serviu para justificar a segregação das pessoas com deficiência que por um longo período foram isoladas dos diferentes ambientes sociais, enquanto a sociedade se eximia de promover mudanças estruturais para assegurar as condições de acessibilidade e de participação.
Eis aí o risco iminente da pandemia do preconceito e da discriminação. Como enfrentar esse risco? Responsabilizando as mulheres? Estigmatizando as pessoas com deficiência? Acreditamos que não. O caminho não é reduzir direitos, mas fortalecer as políticas públicas intersetoriais, ampliando o acesso à informação, à proteção e aos cuidados.
Martinha Clarete Dutra dos Santos
Claudia Pereira Dutra 

domingo, 6 de dezembro de 2015

Errância e Sentido

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença – LEPED
Disciplina: Seminário Avançado – 2º Semestre de 2015
Professora: Dra Maria Teresa Eglér Mantoan
Aluna: Eliane de Souza Ramos

Errância e Sentido

Elaine? Eliane? Eliana?
A errância das inúmeras identidades que assumo e abandono começa em meu nome. Desde cedo aprendi a conviver com ela. Quando alguém vai me chamar, um dos meus eus me alerta: algo diferente de Eliane virá!
Pedagoga? Fonoaudióloga? Professora? Tradutora e intérprete de Língua Brasileira de Sinais? Assessora? Consultora?
Sou fonoaudióloga e licenciada em Biologia. Onde seria o meu consultório? Não tenho um. Fonoaudióloga que não tem consultório? Estranho...
Bragança Paulista? Campinas? Amparo? Brasília? Posso ser de todas estas cidades em uma só semana.
Espírito independente, autônomo, intenso, meigo... Casada? Casada com Flavio. Um homem mais velho e isto não ganha a menor relevância nos dias em que vivemos juntos. Com ele limpamos a casa, lavamos roupa e saímos em busca de um novo suporte para guardar a esponja de lavar louças.
Separamos o lixo reciclável.
Temos a felicidade de conviver com Neca e Tucha, nossas cachorras que passam dos 13 anos. Com Flavio demos vida à Luísa que nos devolve renovada a todo o momento. Com quem ela se parece? Mistura. Diferenciação.
Mãe de Luísa que tem um ano e três meses e ensaia seus passos independentes pela casa enquanto redijo este ensaio. A amamentei. Amo, cuido e me encho de brilho nos olhos mesmo quando a noite de sono foi apenas de 2 horas.
Trajetória profissional intensa combinam com maternidade também intensa? Ou não é uma “boa mãe”, ou não é “uma profissional competente, suficientemente dedicada”. Faltará muito ao trabalho. O cotidiano desmonta este raciocínio de alguns.
São muitos os lugares citados por Bhabha (2013) que ocupo. Neles me vinculo e desprendo das representações que oferecem aconchego e segurança aos que comigo convivem, e também a mim.
Momentaneamente. Pois em um próximo encontro estas representações já não mais servirão para o mesmo fim: aconchegar e tornar-se seguro. Quanto mais sou representada, mais me diferencio.
Eu não sou identidade. Nem fixa, nem fluida. Apenas me ligo a ela para em seguida dela espacar e continuar sendo diferença. A identidade é hóspede da minha diferença. Quando acolho uma identidade devenho-outra Eliane. Nem a identidade nem eu-Eliane, se tornam as mesmas após este encontro. É na mistura que me diferencio e a identidade se mostra limitada, pequena diante da imensidão que habita em mim.
Nos dias em que vivo, a hospitalidade de Derrida (2003) faz-se um apelo permanente. As reservas e os limites da minha pátria, casa, grupo de pesquisa, corpo e alma dão o contorno para aquilo que será atualizado. Hospitalidade não é sinônimo de solidariedade, pois esta última implica na hierarquização das relações.
Quem se solidariza exerce papel superior ao solidarizado. Quem é anfitrião na hospitalidade se mistura ao hóspede sem identificá-lo. A hospitalidade pode ser vivida com quaisquer outros. Com objetos, animais, plantas... conosco também.
Para devir-outro não preciso necessariamente de outra pessoa, preciso inevitavelmente me misturar a algo que dispare em mim a minha potência maior.
A disciplina “Escola e Inclusão – novos territórios educativos” da qual participei durante este semestre enriqueceu as minhas possibilidades de mistura, mas elas não são mensuráveis. Não me vejo em condições de pontuar o que esta disciplina, apenas ela, me oportunizou. Mas, posso dizer com convicção que nela me diferenciei.
Durante o ano de 2015 que agora chega ao fim, fiz conexões que elevaram o meu pensamento à sua mais elaborada compreensão acerca das políticas identitárias nas quais alguns, equivocadamente, se apoiam para defender uma educação inclusiva. Trabalharei com uma citação de Bhabha, a fim de compartilhar esta elaboração.
O lugar do Outro não deve ser representado, como às vezes sugere Fanon, como um ponto fenomenológico fixo oposto ao eu, que representa uma consciência culturalmente estrangeira. O Outro deve ser visto como a negação necessária de uma identidade primordial – cultural ou psíquica – que introduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser significado como realidade linguística, simbólica, histórica. Se, como sugeri, o sujeito do desejo nunca é simplesmente um Eu Mesmo, então o Outro nunca é simplesmente um Aquilo Mesmo, uma frente de identidade, verdade ou equívoco.

            Para aqueles como nós, membros do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença – LEPED, que defendemos a educação inclusiva pautada na ideia de diferença humana, a tarefa de representar o lugar do outro torna-se dispensável. Há muitas pessoas e instituições que a esta tarefa se dedicam.
            Família, igreja, escola, organizações não governamentais, organizações governamentais, todas elas, dedicam boa parte dos seus esforços à produção de representações que se expressam pela identidade. Quando o tema é a inclusão prevalece em nossa sociedade um projeto político, social e cultural do qual emergem os incluídos e os excluídos.
            Quem são os incluídos da nossa sociedade? A pessoa branca; heterossexual; pertencente à classe média; que tem “boas notas” na escola; que se “comporta bem” em casa, na escola e em outros espaços sociais; que não tem deficiência; que é “bonita” e corresponde satisfatoriamente às expectativas de consumo produzidas pela lógica do capital; que se veste convencionalmente e segue aos desígnios da moda; que acredita em Deus e professa uma fé, preferencialmente cristã, entre outros atributos.
Não há novidade quanto às características da pessoa incluída. Também não há novidade no fato de que muitas pessoas não correspondem a tais características. O que se pode fazer então?
            Atualmente identifico dois movimentos que produzem distintas propostas educacionais inclusivas. Um deles produz os excluídos, visto que os incluídos já foram “postos à mesa”. Chamarei este movimento de identitário.
Outro movimento, ao qual pertenço, defende que é preciso “negar a necessidade de uma identidade primordial” (Bhabha, 2013, p. 95). Trata-se do movimento que considera a diferença humana em percursos sociais e culturais, também educacionais, que têm como consequência a inclusão. Sobre estes dois movimentos discorrei nas próximas linhas.
            A produção dos excluídos tem sido entendida, de forma enviesada, como a consideração e a defesa dos direitos destes excluídos a partir da diferença humana. Quando uma sociedade define os atributos dos incluídos consequentemente define quais são os atributos dos excluídos e quem são eles. Excluídos são todos aqueles que não correspondem aos atributos dos incluídos, comumente denominados normais.
Não há muito que se debruçar sobre esta questão para que a sua lógica seja desvendada. Neste movimento identitário as representações são criadas, impostas e mantidas. Mas, este movimento não é inocente. Como nos ensina Tomaz Tadeu da Silva (2008), “as identidades não são inocentes”. Tampouco desprovidas de interesses políticos, econômicos, financeiros, sociais, culturais e educacionais.
Aquele que produz o excluído tem por objetivo promovê-lo, a fim de que ocupe o lugar do incluído fazendo com que os atributos sejam alterados, invertidos. Neste movimento identitário deseja-se que os atributos dos incluídos sejam substituídos pelos atributos dos excluídos, para que os primeiros passem a ser entendidos como norma e tenham legitimidade.
            A defesa pela consideração da diferença humana não se avizinha aos movimentos identitários. Não há como chegar à diferença trilhando caminhos definidos pelas identidades.
            Quando me reporto ao “movimento negro”, “movimento down”, “movimento surdo”, “movimento pela causa operária”, “movimento feminista”, estou tomando como ponto de partida a lógica identitária. Destes movimentos emergirão mais e mais aqueles que são os incluídos e aqueles que são os excluídos, numa lógica de oposição. A pessoa negra não é o contraponto da pessoa branca. A pessoa branca não é o contraponto da pessoa negra. Pessoas não são contrapontos. Pessoas são diferença provisória.
            A inclusão pautada na política identitária mantém o incluído e promove o excluído. É inegável que são muitas as conquistas dos movimentos sociais. Conquistas compensatórias, de concessão, exceção e de diferenciação de um grupo constituído a partir de um atributo semelhante dos membros que o compõem.
As conquistas dos movimentos identitários promovem os excluídos ao mesmo tempo em que os aprisiona a esta identidade que se aperfeiçoa, mas que não deixa de postergar as desigualdades. Um excluído promovido pela lógica identitária e do direito à cidadania não será jamais o incluído, o normal. Será sempre um excluído promovido.
            Para alguém como nós do LEPED, que descobrimos na ideia de diferença humana elementos tão potentes que consideram a univocidade dos seres e a intensidade da atualização que habita cada um de nós, não há alternativa se não abandonar definitivamente tudo aquilo que se avizinha à lógica identitária. Com isso as identidades deixarão de existir? Evidentemente que não. Muitos continuarão, pelas justificativas mais surpreendentes, a investir na produção de uma inclusão pautada nas identidades.
            A política identitária, assim como as identidades, não é fixa. Ela se atualiza. Recentemente tenho visto pessoas (mal)tratarem a ideia de diferença humana, utilizando os mesmos referenciais teóricos com os quais trabalhamos, Gilles Deleuze e Félix Guatarri, de maneira bastante equivocada. O exercício intelectual tem ocorrido no sentido de buscar na identidade a diferença. Buscar a diferença no diverso, no diferente.
            A simplicidade, a precariedade e o caráter efêmero da diferença são tamanhos que precisam ser articulados à identidade para se fazerem valer como fundamento da inclusão identitária. Constructos rebuscados comumente ganham confiabilidade no campo educacional, também em outros territórios.
            Simplicidade e precariedade não é sinônimo de inconsistência. A diferença entendida como cada pedacinho que nos constitui e que não cessa de se atualizar, faz sentido para mim e para tantos outros. Também para aqueles que defendem políticas identitárias para criar os excluídos, em seguida os elevar à posição de “excluídos promovidos” (da qual jamais sairão), e, por fim, serem reconhecidos pela sociedade como grandes feitores tomados de bondade, sabedoria e luz.
A política da diferença não oferece subsídios para que os sujeitos dos movimentos identitários, sempre atualizados, intelectualmente evoluídos e iluminados, sigam com o projeto de fazer a inclusão pela produção do diferente.
            O orgulho pela capacidade intelectual evoluída não permite aos fabricantes dos excluídos promovidos abandonarem a ideia de diferença, afinal precisam mostrar-se atuais nos constructos teóricos que conhecem e dominam. Como- optar pela defesa da diferença humana e manter-se na lógica identitária? Separando de novo e novamente a teoria da prática. Criando e fortalecendo o abismo existente entre boa parte do se produz na academia e a vida vivida.
            Os fabricantes dos excluídos promovidos demonstram propriedade para tratar da ideia de diferença no plano conceitual, teórico, mas a maltratam quando aplicam tal ideia ao contexto educacional. A ideia de diferença não admite a consideração do diferente e do diverso. Tampouco que projetos educacionais, sociais e culturais promovam práticas diferenciadas para alguns: os diferentes e os diversos.
            Não há encontro teórico e prático possível entre os que defendem as identidades e os que defendem a diferença. Não há o que se debater a este respeito. São perspectivas distintas e que promovem a criação de pessoas que se localizam e se vêm na sociedade de maneira absolutamente distinta. Quanto a isto, tenho sentido falta de rigor e consistência em muitas de nossas argumentações.
            Entre os que defendem a inclusão escolar na perspectiva identitária ou na perspectiva da diferença existem particularidades que não podem ser desconsideradas, desprezadas e apagadas. Ao contrário, estas particularidades precisam ser marcadas, pontuadas, esclarecidas e postas à mesa.
Os que defendem a política identitária têm feito tal exposição e defesa com muita dedicação, por meio de um discurso que sensibiliza o ouvinte. Vêm ocupando espaços nos diferentes setores da nossa sociedade e ganhando adeptos. Certamente eles são mais em número do que nós que defendemos a perspectiva da diferença na luta pela inclusão.
            Em nossa sociedade temos e teremos mais defensores da perspectiva identitária do que defensores da perspectiva da diferença. Porém, a perspectiva identitária será desmontada toda vez que um defensor da perspectiva da diferença a tratar com devido rigor, consistência e esmero.
O discurso das identidades não se mantém diante da potência inovadora e imanente da diferença. Sempre que uma identidade for descontruída pela diferença, tratará de se renovar pelos mesmos processos pelo qual se criou. Esta identidade retornará ao discurso e à prática como algo novo, renovado, mas que se mantém na lógica da produção social e cultural daquele que é e será o incluído, e daquele que é e será o excluído. Assim, os movimentos identitários seguem com seus trabalhos se promovendo e sendo reconhecidos pela sociedade. A perspectiva identitária vive e se beneficia dos excluídos que produz.
Encontro hoje três conexões que me fazem melhor compreender a perspectiva da diferença como sustento para a inclusão educacional.
            O primeiro deles refere-se ao fato de que a diferença não é compatível com propostas educacionais universais, ou ainda, globais, portanto não é compatível com a criação de um sistema educacional global. Isto porque este sistema seria inaplicável e não passaria de um “amontoado” de propostas desconexas.
As propostas educacionais universais em vez de serem francamente repressivas, são empíricas e rotineiras, e não correspondem a qualquer ideia de meta a atingir.
O filósofo contemporâneo René Schérer (2009) esclarece que além de buscar por determinadas modificações técnicas que incidem, em particular, sobre os métodos pedagógicos, a possibilidade de uma nova ideia educativa apresenta-se à luz de metas gerais a atingir. Para ele, estas metas não estão apenas no futuro.
É impossível nos questionar sobre o que, a partir da criança, o homem virá a ser, sem tratar a criança como homem (SCHÉRER, 2009, p. 46).

Neste sentido, é preciso compreender que somos movidos por aquilo que nos afeta. Schérer (2009) afirma que produzimos, criamos a partir de nossas paixões. Paixões estas que não são entendidas como “falta”, como algo que não será jamais alcançado como defende a psicanálise.
A paixão para Schérer deve ser entendida como produção, logo, não deve ser reprimida como acontece nos programas educacionais universais, globais. Ao contrário, as paixões devem ser incentivadas e organizadas. Organizadas pelas próprias pessoas que por elas se movem. A escola deveria então, oferecer aos seus alunos uma “bússola” de orientação das paixões.
Schérer (2009) aponta para uma educação unitária:
A educação unitária é animada por um princípio que elimina qualquer dever inconciliável com um outro, ou o conflito de um dever com um desejo, pela simples razão que ela ignora, em todos os níveis e a qualquer momento, a coação. Portanto, a questão da meta atingir pela educação é, antes de tudo, a do acordo entre a atração e a ordem, segundo a qual tal associação só é possível quando ela é desejada apaixonantemente, necessária para a satisfação das paixões. Ao mesmo tempo e imediatamente, concebe-se que tal postura implique uma modificação de sentido relativamente à finalidade da educação. A meta a atingir deixa de ser um objetivo distante – suscetível de ser apresentado, de forma razoável, à criança (acrescento: ao aluno), ao propor-lhe, como ideal, seu ser no futuro – para se realizar desde o momento presente (SCHÉRER, 2009, p. 46).

            A segunda importante conexão que tenho alimentado no estudo dos textos de Schérer, refere-se ao fato de que a perspectiva da diferença para a educação inclusiva não pode ser pensada a partir da razão, mas sim, a partir da experiência sensível. Por isso emana das paixões, que orientadas pelo próprio sujeito, encontram-se com as paixões das outras pessoas, produzindo a harmonização destas (paixões) na sociedade.
            Para Schérer (2009), nossos desejos, nossas paixões apresentam-se como “tigres enfurecidos” em civilização, mas são, em si mesmos, irreprimíveis e incoercíveis. O contexto educacional, na perspectiva do incentivo e da orientação das paixões, e da atualização da diferença, não se baseia no sacrifício nem na subordinação destas (paixões e diferença) a um interesse superior. Tampouco no apelo a um altruísmo sentimental, tais como a solidariedade ou a fraternidade. Nem se propõe a operar essa transformação priorizando o ser razoável em detrimento do ser sensível. Nesta perspectiva, prevalece a capacidade superior de desejar.
            Por fim, a terceira conexão revela que a inclusão pensada a partir da diferença humana e das paixões se dá nos acontecimentos que temos a oportunidade de viver na escola e fora dela.
Quando vivem acontecimentos, alunos e professores singularizam-se, diferenciam-se, criando brechas que driblam todas as formas de categorização. Quanto mais a diferença de cada pessoa se encontrar e se conectar à outra diferença, mais fecundo será o plano de imanência no qual pensamentos criativos se proliferarão. Quanto mais aberto o plano de imanência, maiores as chances do acontecimento se dar. Sendo o acontecimento o movimento pelo qual a singularidade se faz, quando mais acontecimentos vivermos, mais autênticos serão os nossos pensamentos e as nossas aprendizagens, também as nossas propostas educacionais.
Ao contrário do que se possa imaginar, não é a semelhança que faz proliferar o pensamento, a inteligência, a linguagem, a língua, as emoções e os afetos na sua mais intensa produção, mas sim a diferença humana.
Acontecimento refere-se ao movimento pelo qual a singularidade é produzida. Para Deleuze, possibilidades de criação orbitam o nosso ser e, ao se depararem com virtuais/elementos que as intensificam, deslocam-se em movimentos produtores de outras/novas singularidades.
Estes virtuais/elementos podem ser pessoas, objetos, movimentos, diferentes expressões pela linguagem, encontros consigo mesmo, silêncios, vozes. O acontecimento para Deleuze (2010) é o processo pelo qual se fabrica a singularidade.
Assumir a aula como um acontecimento é necessário, pois considero a singularidade uma construção indispensável para a composição da multiplicidade, e consequentemente da diferença humana. A singularidade potencializa o processo de proliferação da diferença. Sem problematizar os processos de produção da diferença por meio do acontecimento, estaremos mais vulneráveis às ciladas da categorização, da homogeneização e às políticas identitárias.
O acontecimento não pode ser previsto, antecipado e provocado. Por este motivo estaria então esta perspectiva esvaziada de sentido? Penso que não, pois o acontecimento pode ser impedido e a esta possibilidade vou me ater.
Na busca por alguns dos elementos impeditivos do acontecimento retomei o meu trabalho de mestrado no qual compreendi, apoiada em Rancière (2005), que a distância entre alunos e professores que escola e a sociedade desejam minimizar, é aquela que a sustentam no ato educativo e que não cessam de reproduzir.
Tal distância pode ser visualizada sem esforços entre os incluídos e os excluídos. Aqueles que defendem uma política identitária vivem desta distância, logo, dificilmente abrirão mal de tal perspectiva.
Se desejarmos que os alunos alcancem a mesma aprendizagem na escola, mesmo que seja no ensino diferenciado para alguns como defende a perspectiva identitária, logo, para os diferentes, localizaremos a desigualdade como um ponto de partida e a igualdade como um objetivo a ser alcançado.
Para Rancière (2005), a igualdade de entendimento não é o resultado de um processo de ensino. A igualdade deve ser colocada antes, pois deve ser compreendida como a capacidade que todos temos de produzir conhecimentos, à nossa maneira.
Quando um professor convive com seus alunos considerando em cada um deles a capacidade de aprender já no início do ato educativo, ele amplia as oportunidades de aprendizagem as quais terão acesso todos os alunos. Como consequência deste processo de ensino, acontecerão movimentos dos mais distintos de transformação da diferença que constitui cada ser.
Não se deve confundir esta transformação constante da diferença com aquilo que chamamos de desigualdade. A diferença não pode ser classificada como igual ou desigual porque se modifica constantemente. Na escola inclusiva, o professor não trabalha com desigualdades na aprendizagem, mas com a diferença que se revela em cada aluno durante as situações de ensino.
Para Rancière (2005) educar pode significar duas coisas absolutamente opostas. Potencializar, reproduzir e representar a incapacidade do outro pelo próprio ato que pretende reduzi-la postergando o embrutecimento, ou forçar uma capacidade à sua proliferação, mesmo que ela nos pareça incompreensível, gerando dobras, mutações, deslocamentos que levam à emancipação intelectual pela diferença.
Acredito que o acontecimento emancipa. Quando a aula promove a articulação entre elementos/virtuais que povoam nosso ser (Deleuze, 2010), temos a oportunidade de potencializá-los gerando novas/outras singularidades, e, portanto, a mutação da diferença.
Ao contrário, quando o ensino oportuniza a reprodução do mesmo, a mesmidade, por meio de atividades que localizam a igualdade das aprendizagens como um ponto de chegada, ele embrutece o aprendiz. O acontecimento é então impedido de fazer-se.
Como identificar quais são os elementos que podem impedir o acontecimento, a fim de evitá-los durante uma aula? Esta identificação seria possível diante da imprevisibilidade do acontecimento?
Em meio a estas perturbações sinto-me motivada a localizar a aula em um plano de imanência aberto às conexões entre a Filosofia, a Ciência, a Arte e a Vida. Compreendo o plano de imanência como um horizonte de criação em que a experiência vai se diferenciando de acordo com cada aluno, nas situações de ensino criadas pelo professor.
O acontecimento será vivido por cada pessoa conforme as oportunidades de criação que orbitam o plano de imanência. Na aula, o plano de imanência potencializa os percursos de criação dos envolvidos no processo de ensino, possibilitando a transição entre o conhecido e o desconhecido pelo aluno e pelo professor. Nas palavras de seu criador, Gilles Deleuze, sem um plano de imanência nós nos perderíamos no infinito do pensamento e permaneceríamos no caos.
Deleuze (1977) nos convida a viver a realidade de forma atenta e constante na relação inseparável com a natureza. A vida é imanência. Para isso, é preciso que ampliemos nossas percepções da realidade por meio dos sentidos, sem nos localizarmos no exterior dela, mas sendo parte dela. Para Deleuze, a busca pelos pequenos detalhes é o que de fato importa para a manutenção do pensamento criativo.
A imanência, termo criado por Deleuze, sugere conexão com a realidade, com as pessoas, objetos, sensibilidades e afetos. Conosco mesmo. Já a transcendência conduz o professor ao imaginário, ao ideal, ao aluno preso a uma identidade fixa, portanto, a transcendência distancia o professor do seu aluno real, e consequentemente, impede que o trabalho pedagógico seja construído no movimento constante de transformação da diferença humana. Só será possível viver acontecimentos em uma aula, quando professores percorrerem planos de imanência com seus alunos reais.
Os estudos de Deleuze revelam o sentido da diferença humana. Esta é singular, única e se auto-diferencia constantemente.
Atenta ao fato de que a univocidade e a singularidade são próprias dos seres humanos me recuso a pensar sustentada em categorizações, generalidades, que inserem etiquetas que identificam a quem quer que seja. Sendo a diferença algo que se multiplica e segue diferindo, não cabe aplicar a ela qualquer sentido exterior.
Por isso tudo, nem Elaine, nem Eliane. Nem fonoaudióloga, nem pedagoga. Sou simplesmente diferença e é isso que defendo para todos. Defendo que continuem sendo diferença e alcancem a sua mais aprimorada versão, sempre, hoje e novamente.

Referências

BHABHA. H. K. O local da cultura. 2ª Edição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
DELEUZE. G. GUATARRI. F. O que é a Filosofia. São Paulo. Editora 34, 2010.
DELEUZE. G. GUATARRI. F. Kafka por uma literatura menor. Rio de Janeiro. Editora LTD, 1977.
DERRIDA. J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
HALL. S; WOODWARD. K. Identidade e diferença – a perspectiva dos Estudos Culturais. Org. Tomaz Tadeu da Silva. 8ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 2008.
RANCIÈRE. J. O Mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ª Edição. Belo Horizonte. Autêntica, 2005.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

GRUPO DE ESTUDOS
LIVRO : MISCELÂNEAS

Ismenia Carolina Mota Gomes Bosco (Carol)


ESPAÇOS DO POSSÍVEL : ESCOLA, DIFERENÇA, ARTE E INCLUSÃO


“A Arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”
Maiakovski 

A CAIXA MÁGICA

O local é uma escola pública de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação de Jovens e Adultos, Alfabetização de Adultos, pouco importa ! O que realmente conta é estarmos numa sala de aula, em círculo, formado por crianças ou jovens ou adultos, todos sem distinção,  sentados em torno de uma área central onde repousa uma caixa tangível, quadrada e vermelha,  que é mágica.

O lugar central  do círculo  é a área do sagrado, das celebrações, para onde converge a imaginação de cada um dos participantes. Dentro da caixa mágica, foram depositados objetos, lugares, personagens e sentimentos,  todos sempre imaginários, os quais constituem o sagrado criativo de cada um. Os objetos imaginários passam a viver na Caixa Mágica e, ao longo do ano escolar,  são revisitados de diversas e diferentes maneiras, cantados, dançados, dramatizados, desenhados para, finalmente, tornarem-se Personagens que passam a habitar uma história criada  coletivamente pelos participantes do ateliê.  História que pode ser contida e contada  em um  livro, um cartaz, uma peça de teatro ou em todos estes formatos, mas sempre passando pela  expressão escrita e falada de um Conto.

Produzido por um pequeno instrumento de origem asiática, ouve-se o retinir de um som de “PIMMMMM”,  o qual pode remeter ao som uma brisa suave percorrendo  montanhas, a sinos longínquos que badalam e remetem a lembranças remotas perdidas nos meandros das memórias presentes e ausentes. Todos o recebem de olhos fechados, sem falar, apenas ouvindo. Aliás, no ateliê,  procura-se deixar as palavras  faladas descansarem. Em seguida, todos se olham nos olhos e repassam um para o outro esse olhar, e quem o  recebe repassa para o seguinte, que o recolhe e o repassa, assim sucessivamente, até que se fecha o círculo. Recomeça-se, agora com o ouvido, o qual deve ser igual e cuidadosamente repassado uns para os outros, colando-se orelhas com orelhas, até que novamente o círculo se fecha.  Com essas “atitudes simbólicas”,  os presentes “dizem” que estão juntos, cúmplices, atentos uns aos outros.

Pronto ! Levantam-se todos e se espreguiçam, o ritual de abertura do ateliê está concluído. O inconsciente de cada um já se  encontra  informado que aquelas pessoas estão em situação de jogo, de simulacro e habitam, mesmo que temporariamente,  o espaço concreto e subjetivo do Imaginário.  Com essa informação crucial, ele, o inconsciente, pode liberar-se e liberar os materiais importantes das vivências e experiências que vão constituir os frutos da criatividade artística dos participantes. Criações materializadas em objetos, gestos, movimentos, cantos, falas e  execuções musicais que traduzem e revelam, paradoxalmente sem revelar, portanto, sem expor,  as peculiaridades e necessidades de cada um. Especificidades no modo de aprender, de se comunicar e de estar no mundo, que se  expressam, sobretudo, no modo como cada participante habita o espaço de jogo do ateliê. Espaço este, que por sua natureza intrínseca, respeita  as diferenças de todos, simplesmente porque, para a área de jogo, obrigatoriamente, cada um pode trazer  o que realmente é, no aqui e agora de sua criação artística.

Realiza-se a atividade de criação do dia, a qual  é, em suas linhas gerais, planejada com antecedência. No entanto, com frequência, no desenrolar das ações o planejamento prévio é modificado pelos participantes, os quais, por  motivos subjetivos de um ou de vários deles ou por imposição da própria criação coletiva, costumam enveredar por caminhos insuspeitos, mas sempre pertinentes às necessidades do grupo naquele dia e momento. Cabe ao professor-coordenador do ateliê estar atento e sensível.

As atividades de criação podem ser uma dança e ou um jogo dramático, um canto, tocar instrumentos e ou cantar, inventar um conto e  dramatizá-lo com ou sem fantoches,  enfim as possibilidades e combinações são quase infinitas, como a vida, aliás !

Em ateliês de Teatro, Jogo Dramático, Conto, Música, Dança, Poesia realizados no ambiente escolar, grande parte dos materiais utilizados estão disponíveis na escola e ou na casa das pessoas que ali trabalham, estudam, trazem seus filhos. Alguns poucos precisam ser comprados, o que não impede que grandes produções possam ser realizadas. Utilizam-se  sucatas variadas, retalhos de tecidos de diversos  tamanhos, cores e texturas,  roupas e acessórios usados como chapéus, coletes, cachecóis, bengalas, bolsas. Materiais artísticos das áreas de Teatro, Música, Dança  e Artes Plásticas  em geral,  espelhos, objetos descartados de uso cotidiano, tais como telefones, vidros vazios de perfumes, caixas.  Livros de contos, histórias, poesias em geral. Discos  e instrumentos de música variados, criados ou comprados. Aparelhamentos de som, vídeo, filmagens e fotos. Imagens fotografadas, pintadas, desenhadas, recortadas. Recursos diversificados de iluminação.

O espaço físico precisa propiciar   tranquilidade, privacidade, as portas permanecem fechadas, sem interrupções da realidade exterior à área de jogo, para que se estabeleça  uma atmosfera propícia a um mergulho no Imaginário, em atividades de criação artísticas em grupo e individuais.
Após uma hora, em média, de tempo de ateliê, chega-se ao final. Os participantes se reúnem, novamente, em círculo em torno da caixa mágica, a qual permaneceu todo o tempo no centro da sala, como testemunha, campo de projeção e catalizador do Imaginário de todos. Sempre com a mesma música, anteriormente escolhida pelo grupo, é realizada a dança da roda final e, como no ritual de abertura, o inconsciente de cada um é notificado que vamos nos retirar da área de jogo, emergir do mergulho no Imaginário, encerrar nosso ateliê do dia.

Com alguns grupos, ainda sentados em círculo, avaliamos nosso ateliê, sem julgamentos de valor sobre as performances de ninguém.  Sem obrigatoriedade, cada participante  verbaliza as dificuldades e prazeres experimentados quando realizou ou não as atividades criativas.  Pensam juntos maneiras de melhorar a criação coletiva.

Ao longo de todo o ateliê apenas uma atitude é obrigatória, estimulada, proposta, repensada, o esforço de ESCUTA, de si mesmo e do outro, traduzindo um encontro, respeito e abertura para estar presente, profundamente implicado, compartilhando  o aqui e agora do jogo de criação coletiva.
Na função de professora de Educação Especial, realizamos as atividades pedagógicas, mediadas por dispositivos artísticos, acima descritas, em ateliês de arte, nas escolas municipais onde atuamos. Mostram-se acolhedoras para com as diferenças entre os alunos e profundamente inclusivas. Considero-as como “entre-lugares, lugares de encontro entre margens, “espaços do possível”, “espaços potenciais”, conceitos cujos fundamentos teóricos discutiremos brevemente a seguir.

DIFERENÇAS E ENTRE-LUGARES 

“A Arte nos foi dada para não morrermos  da Verdade”
Nietzsche 
                                                          
O conceito de Outrem
“Há, nesse momento, um mundo calmo e repousante. Surge, de repente, um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo. Outrem não aparece aqui como um sujeito, nem como objeto, mas, o que é muito diferente, como um mundo possível...” (3, p. 28).

Mostafa, S.P. e Nova Cruz,  D.V. em sua obra explicativa “Para Ler a Filosofia de Gilles Deleuse e Felix Guattari”, tentativa de nos auxiliar a compreender o pensamento  desses autores, informa ( 7, p. 27) que, para ilustrar seu conceito de “Outrem”, Deleuse se baseou na recriação da história de Robson Crusoé, escrita já no século XX, por Michel Tournier (8), filósofo-romancista francês, nascido em 1924. Esse autor, situou a ilha onde se desenrola a saga no Pacífico Sul, tropical, quente, portanto.

O  Robson Crusoé  original,  criado por Daniel Dafoe em 1719 (2), naufraga na costa do Caribe, e torna-se um vitorioso sobre si  mesmo, que, através de seus esforços, desbravou e transformou num império do tipo ocidental a ilha onde ficou confinado e que salvou o nativo Sexta-Feira de ser imolado por outros e o “civilizou”, retornando inclusive com ele para o mundo “civilizado”, quando, após vinte e sete anos, finalmente, um navio aportou na ilha. Ou seja, um herói europeu branco e romântico que salva um nativo,  muito provavelmente de pele escura, de si mesmo.
Michel Tournier,  recontou a saga do personagem, mostrando-o não  como um herói, mas como um náufrago a realizar um esforço imenso para vencer o desejo de  se entregar ao desespero da solidão, através do trabalho disciplinado para conquistar e “territorializar-se” em sua ilha perdida.

“ Assim, ele tinha tudo de que precisava naquela ilha; tinha o que comer e beber, uma casa, uma cama para dormir, mas para sorrir não tinha ninguém (grifo meu), e seu rosto parecia uma máscara gélida (8, p. 43)”.
“...É muito difícil continuar sendo um homem quando não há ninguém por perto para ajudar...(idem, p. 32)”.

Ainda segundo as autoras citadas (7, p. 29), Deleuze ( 5, p. 32) traduziu esse mundo sem Outrem “...como cru e negro, sem potencialidades nem virtualidades: é a categoria do possível que se desmoronou...Nada além de Elementos... Tudo é implacável...”

Assim, num esforço gigantesco, Crusoé  reconstrói em sua ilha o único estilo de vida que conhecia, organizada de modo rígido e milimetricamente determinado. Nessa  rotina, o único descanso que se permitia era, ocasionalmente, internar-se nas profundezas de uma gruta, onde permanecia por horas e até dia, recolhido, reconfortado, como no útero de sua mãe. Voltava para a realidade de sua ilha, até que o cotidiano implacável o consumisse novamente, levando-o de volta à gruta para refazer-se.  Até que, um dia, aparece Sexta-Feira, o “Outrem”,  e, com ele, todo um novo mundo possível (7, p. 29).
Sexta-Feira, literal e acidentalmente, explodiu a ilha com  reservas de pólvora, restos do naufrágio trazidos pelo mar e  que o insano e “civilizado” Crusoé havia armazenado  “para uma eventual necessidade”. Viram-se, pois, na contingência de reconstruí-la. Mas, agora havia o “Outrem”, aquele que agrega diferenças, novas propostas, forja novas identidades. Havia alguém para ajudar, com quem sorrir e  continuar a ser um homem.

Tudo se transforma na reconstrução: a ilha que, segundo Deleuze (4, p. 312), também é herói na história, tanto quanto os humanos, modifica-se, ganha novos contornos. Sexta-Feira reassume-se como selvagem e mostra ao europeu Crusoé novas possibilidades de vida, mais apropriada ao território onde vive, uma ilha tropical.

“O conceito de outrem, como mundo possível, criado e construído assim por Deleuze (4, p. 315) assegura as margens e as possíveis transições (grifo nosso) dessa nova estrutura possível de existência... Conceito filosófico que se ocupa de um estranhamento, de uma situação de experimentação de vida, trata de um acontecimento. Uma possibilidade virtual, retirada  do caos possível, trazida por outrem, atualizada no real, em uma mudança absoluta do pensamento: viver na ilha, instaurando um novo plano imanente a essa ilha, uma nova existência para os homens que a habitam, os animais, as plantas e, principalmente, para o próprio território-ilha. Ilha que se configura pelos movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização que ali se realizam: Geofilosofia.” (7, p. 31)”


FRONTEIRAS – HIBRIDISMOS   - ENTRE-LUGARES
“ALÉM”

“Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.”
Martin Heidegger, "Building, Dwelling, Thinking"

Os conceitos desenvolvidos por Deleuze sobre  outrem, territorialização, desterritorialização e reterritorialização, levam-me a ousar algumas analogias com outro autor, Homi Bhabha, especialmente na Introdução do livro “O Local da Cultura”, Editora UFMG, Belo Horizonte, 1998. (1, p. 19)

Para Deleuze, encontros, abertura, margens e  transições possíveis que possibilitem mudanças paradigmáticas  de pensamento e novas existências para os homens e seus lugares de vida compartilhada. Tudo a partir de experimentação do que foi trazido por outrem, sugerindo experiências  inusitadas, atualizadas no aqui e agora dos acontecimentos. Bhabha nos propõe novos conceitos  sobre identidades e fronteiras, e suas possibilidades de ir “além”, de  recriar identidades a partir de interstícios que podem ocorrer em “entre-lugares”, espaços intermediários de circulação, que favorecem encontros transformadores.

Na recriação da saga “Robson Crusoé”, de Michel  Tournier, Sexta-Feira surge como “Outrem”, aquele que vem trazer novas possibilidades de viver “além”, como definido por Bhabha

"além não é nem um novo horizonte, nem um abandono
do passado... Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação
dos anos no meio do século, mas, neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de transito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade (grifo meu), passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. Isso porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção, no "além": uma movimentação exploratória incessante, que o termo francês au-dela capta tão bem - aqui e lá, de todos os lados, fort/da, para Iá e para cá, para a frente e para trás! ” (1, p. 17)

 Sexta-Feira e Robson Crusoé poderiam, portanto,  representar, de acordo com os conceitos de Bhabha,           duas culturas diferentes, que  produziram hibridismos,   novas “...figuras complexas de diferenças e identidades ...” (Idem), pois não permaneceram entrincheirados em suas fronteiras identitárias. Foram além, abandonaram as margens onde habitavam e encontraram-se no “entre-lugares” dos espaços simbólicos  da ilha, em  movimentos dinâmicos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização , que transformaram e suas existências e o espaço físico da ilha. Entre-lugares,  que são definidos por Bhabha (Idem, p.20) como:

“ ...aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novas signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação no ato de definir a própria ideia de sociedade.”



E A GRUTA ?   O  ESPAÇO TRANSICIONAL

“Nas margens de todos os rios do mundo, as crianças brincam “
R. Thagore

Retomando o personagem Robson Crusoé, agora considerado apenas como um indivíduo que, em alguns momentos, rompia com sua dura e  solitária rotina de vida, refugiando-se nos fundos de uma gruta, onde permanecia algum tempo como que regredido, em posição fetal, habitando um útero, o que lhe restituía um pouco de refazimento e consolo.

O conceito de “entre-lugares” acima citado, levou-me a pensar no  “espaço-potencial”, espaço psíquico,  descrito por David Winnicott (10), onde  ocorre a negociação entre as duas ordens de realidade, externa e interna, a qual todo ser humano está, inexoravelmente, submetido.  Espaço de jogo, que se desenvolve através do balançar e das canções infantis,  na relação primária com a mãe (entenda-se aqui “mãe” no sentido mais amplo de “maternagem”,  o que engloba as relações que a criança   estabelece, progressivamente, com o pai), onde se iniciam os processos de simbolização, que são complementados  no Imaginário e permitem ao ser humano dar sentido às experiências que vive. O que o impede de ser massacrado, porque submetido, pela realidade externa e nela interferir de maneira criativa e, portanto, transformadora.

Ao longo da vida, se desde as primeiras interações afetivo-culturais, o desenvolvimento global do indivíduo  vem ocorrendo de maneira positiva, o espaço potencial continua a expandir-se, englobando as experiências culturais da Arte,  Religião e Filosofia, as quais constituem tentativas de dar sentido às experiências sociais desse sujeito.

Seria possível uma analogia entre os conceitos de  espaço potencial de Winnicott e o de entre-lugares de Bhabha ? Sendo que, se nestes últimos ocorrem os interstícios entre diferenças culturais, as quais engendram novos signos  paradigmáticos de identidade, o “espaço potencial” seria o lugar interno, psicológico onde o indivíduo “negocia” a realidade externa, objetiva, compartilhada com seus pares humanos e a sua realidade interna, oriunda de suas experiências afetivas, subjetivas, conscientes e inconscientes.

Trata-se de um espaço de repouso e jogo, como o brincar das crianças, onde tudo é possível,  do faz-de-conta,  no qual o indivíduo mentalmente saudável, embora consciente da condição de  simulacro, de imaginação do jogo, deixa-se levar em sua fantasia, num faz-de-conta que leva-o a revisitar seus espaços interiores, carregados de afetividade positiva. Um movimento que lhe permitiria não somente sobreviver ao mundo exterior, mas compreendê-lo e transformá-lo.

Para Robson Crusoé, então,  a gruta seria a metáfora de um espaço-potencial concreto e simbólico de refúgio e  repouso mental, onde seria possível se religar com seus antigos caminhos afetivos interiores. Em seu interior, mesmo consciente de ser  um  jogo, ele poderia imaginar-se regredir ao estado de uma criança pequena, nos braços de sua mãe ou, até mesmo, retornar para uma visita ao seu útero protetor. Ao emergir do mergulho no imaginário, Crusoé poderia novamente enfrentar a dura realidade exterior de ser um náufrago solitário, perdido em uma ilha e isolado do mundo.

Será que sem essas imersões no Imaginário, seria possível a Robson Crusoé preservar sua saúde mental, a ponto de, ao encontrar-se com Sexta-Feira, poder se abrir à experiência “intersticial” de produzir hibridismos culturais e recriar lugares e novas experiências de vida ? Por outro lado, podemos supor, observando como eram boas as visitas ao mundo da imaginação, que Crusoé viveu excelentes experiências afetivas primárias com o objeto (a maternagem), o que lhe rendeu um espaço-transicional de início bem constituído.


O QUE TUDO ISSO TEM A VER COM ESCOLA  ?
COM A DIFERENÇA NA ESCOLA 
COM A INCLUSÃO NA ESCOLA ?

“E quando o inesperado chegar, precisamos ser capazes de rever nossas ideias e teorias, em vez de encaixar o novo fato a fórceps na teoria incapaz de enquadrá-lo”
E. Morin

Nos últimos vinte anos, na maior parte da  sociedade ocidental, incluindo o Brasil, intensificou-se  a discussão sobre a escola e suas qualidades. Sobretudo no anos básicos de escolarização, nunca se questionou tanto sua eficiência como local, não só, de  produção de conhecimento,  mas de Educação, de formação global de um ser humano crítico, capaz de pensar o mundo e, até, de contribuir para o transformar, tornando-o melhor. Resumindo,  a escola tem sido questionada e avaliada intensamente em sua capacidade de ser inclusiva.

No Brasil,  é relativamente recente  a discussão da escola ser ou não inclusiva,  com ênfase na inclusão das pessoas com deficiência. Contudo, na realidade, a discussão engloba fatores que indicam qualidade de educação para todos os alunos, sem distinção. Intensificou-se ao longo dos últimos doze anos, em função, da regulamentação da legislação referente aos compromissos internacionais firmados por nossos representantes, sobretudo na Guatemala (1999) e, mais recentemente, na ONU (2006) , os quais já haviam sido contemplados na reforma constitucional de 1988.

Todavia, o “chão da escola”, em nosso caso pública, vem confirmando que, de fato,  o que  acirrou as discussões sobre a natureza  inclusiva de uma escola, foi a matrícula massiva de pessoas com deficiência em nossas instituições de ensino.

Como no poético título da obra de  Carlo Lepri (5), que trata da inclusão social das pessoas com  deficiência, vieram como “Viajantes Inesperados” e, sem cerimônias e com o amparo da  Lei ,   instalaram-se nos  bancos escolares.  Como justificativa para o título da obra, o autor diz que “...ele parece transmitir uma imagem poeticamente evocativa da condição humana das pessoas com deficiência” (p. 18).

Apropriando-nos da bela definição, não poderíamos ampliar a imagem poética para evocar a questão da diferença, de qualquer tipo, na condição humana? Diferença, que embora inerente, é quase sempre percebida socialmente como algo inesperado, que provoca estranhamento e sobre a qual os esquemas fechados de  representações sociais lançam seus tentáculos imobilisantes, procurando enquadrá-la de tal maneira que, no dizer de Deleuze, em seu livro “Diferença e repetição”, citado no prefácio por Maria  Tereza Egler Mantoan ( idem,  p. 14), ela não pode ser pensada por si mesma.

Na mesma obra, Mantoan afirma, ainda, que “De fato, as representações são criações, são inventadas para atender a interesses da ciência, da sociedade, dos poderes que nos controlam, mas a diferença, como a qualifica Deleuze, é maldita (grifo nosso), por escapar de qualquer força que a torne finita, que a restrinja e a sujeite a um modelo.”(idem, p. 14 )

Os “Viajantes Inesperados”, os alunos com deficiência, que apresentam nada mais  do que diferenças acentuadas, trouxeram , pois, para o âmago da escola a discussão sobre nossas diferenças, sobre o  normal e o anormal, sobre o direito mesmo de  sermos como somos, todos imensamente diferentes !  Na verdade, nos presentearam com espelhos, que refletem nossas representações preconceituosas e obsoletas sobre o outro. Nos obrigam, enquanto profissionais da Educação,  equipe escolar como um todo e as famílias,  a abandonarmos as máscaras atrás das quais habilmente nos escondemos uns dos outros, perseverando a laborar num modelo de escola, quiçá  de vida,  que  reproduz saberes,  poderes e valores de dominação.

Todavia, como fato dado, cujo direito é indisponível, a presença de alunos com deficiência vem abalando a mesmice, o marasmo pedagógico  dessa escola tradicional, elitista e ineficaz,   reintroduzindo de forma intensa  discussões  técnicas, éticas e filosóficas, que nos obriga a sermos criativos e  reinventar  métodos, práticas, teorias e, sobretudo, nos obriga a nos enxergar e ouvir mutuamente, para nos relacionarmos de maneira mais verdadeira e igualitária.

As reações têm sido apaixonadas !  Temos nos debatido como náufragos e as atitudes são diversas. 
Como na  saga de Robson Crusoé, há aqueles  que reagem ao aluno com deficiência como o Crusoé da versão original ,  na qual, ao encontrar Sexta-Feira,  inicia um processo para “civilizá-lo”, ensinando a ele toda a organização europeia que procedeu na ilha, tornando-o um “integrado adaptado”. Diferente e felizmente,  já existem os profissionais e famílias que, como na segunda versão da estória,  recebem e incluem o “viajante inesperado”, dá-lhes boas vindas um pouco tímidas, mas plenas de interesse em saber do que precisa, em ver e ouvir o que ele carrega na bagagem e o que tem a dizer. Abrem, assim, “espaços do possível”

Os colegas desses alunos com deficiência, ao contrário,  quanto mais novos mais facilmente se mostram abertos e colaborativos. É sabido que crianças transitam muito mais facilmente entre  fronteiras, entre diferenças, pois ainda não há representações sociais cristalizadas.  Enquanto educadores, precisamos  cultivar atitudes de quem verdadeiramente entra em relação com o “outrem”, como definido por  Deleuze, aqui representado pelo aluno com deficiência.  É necessário propiciar a todos alunos, indistintamente, oportunidades  de encontros, favorecendo as descobertas das próprias e das diferenças que permeiam a vida. Para isso, é preciso criar na escola espaços e práticas pedagógicas que possam funcionar como os “entre-lugares”, propostos por Bhabha,  e estimulem interstícios e hibridismos culturais e novos paradigmas identitários.


A  ESCOLA QUE SONHO

“A perspectiva de se formar uma nova geração dentro de um projeto educacional inclusivo é fruto do exercício diário da cooperação e da fraternidade, do reconhecimento e do valor das diferenças,  o que não exclui a interação com o universo do conhecimento em suas diferentes áreas.” (6, p. 9)

Partilhamos da concepção que escola para todos, inclusiva, adapta-se aos alunos e não ao contrário. Está centrada nos processos de aprendizagem, nos diferentes modos de aprender.

Funciona como um campo de pesquisa, onde coexistem obrigações e liberdade de escolha. Onde é possível pesquisar e descobrir.

Adota currículos abertos, em construção coletiva, de acordo com os interesses e necessidades dos envolvidos e não há adaptações para os alunos mais ou menos dotados. Não há hierarquia de valores entre conteúdos, pois valoriza a construção de conhecimentos acadêmicos e atitudinais. Nunca, em tempo algum, nem de nenhum modo, adota terminalidade específica, como norma, para alunos com deficiência.

Privilegia métodos, práticas e posturas pedagógicas que respeitem o ritmo de cada aluno e seus singulares modos de se apropriar do conhecimento; favoreçam a iniciativa pessoal, a pesquisa sobre assuntos diversificados e os diferentes pontos de vista sobre eles; procurem estimular o livre debate e a circulação de opiniões. Para tanto, oferece espaços, materiais, oportunidades e recursos educacionais diversificados, para que cada um possa se apropriar dos processos de construção de qualquer tipo de conhecimento de acordo com suas possibilidades pessoais.

A escola inclusiva tem um modo de gestão coletiva e democrática, pois, sem distinção  de idade, raça, gênero ou função, estimula a participação de todos os atores da comunidade escolar. Todos são responsáveis, podem e devem oferecer sua contribuição para a contínua melhoria da própria instituição.

Sobretudo, na escola inclusiva os conflitos e sua gestão são tratados como conteúdos,  onde as relações de cooperação e , como dizia mestre Paulo Freire, a amorosidade são privilegiadas.

Quanto ao bom professor-educador dessa escola que sonho, faço minhas as palavras da professora Mantoan quando o define como aquele que ensina a turma toda e declara que considera a educação “...como uma expressão de amor verdadeiro pelo outro, pois educar é empenhar-se por fazer o outro crescer, desenvolver-se, evoluir.”(6 p. 5).  Seja quem for esse outro, aluno com ou sem deficiência.


MINHA CONTRIBUIÇÃO: 
POR QUÊ A ARTE COMO MEDIAÇÃO NO TRABALHO  EDUCACIONAL ?

                                                                      
“...os cegos e os poetas enxergam na escuridão. ”
         Chico Buarque de Holanda


Teatro - Conto – Poesia – Música – Dança
 Espaços Possíveis em Educação Comum e Especial


A Educação trabalha com o pensamento e a emoção do aluno, em atividades que favoreçam o desbloqueio dos entraves que dificultam a aprendizagem, procurando facilitar um modo global de aprender, que integre o sentir, o fazer e o pensar. Busca, dessa maneira, um “aprender significativo”, com o desenvolvimento e expansão do nível de consciência do sujeito, através da sua participação ativa na construção do conhecimento.

Em defesa de uma Pedagogia da Criatividade, declarou Vygotsky (9) que para formar alunos   ativos e atores em sua aprendizagem, é indispensável favorecer o desenvolvimento da criatividade e imaginação, ou seja que a capacidade de simbolização e as funções “imaginativas”  sejam estimuladas.

Pela sua própria natureza, atividades de criação artística mobilizam esses níveis da atividade psíquica. A participação em um ateliê de teatro, conto, musica, poesia e ou dança favorece, pela prática do jogo e através da ficção, que o sujeito aperfeiçoe sua memória, atenção e concentração, desenvolva seu raciocínio lógico-matemático, suas capacidades criativas, imaginativas e de comunicação;  descubra ou redescubra o senso de humor e a possibilidade de sentir prazer.

Requalifica o ser humano, porque contribui para aumentar sua autoestima e integração social, na medida em que desenvolve sua capacidade de ser solidário, de respeito, escuta e abertura aos outros. Nesse encontro com o outro há um movimento duplo, no qual a pessoa, no espaço do “aqui-e-agora” do jogo, aprende ou reaprende também a descobrir e a ocupar seu próprio espaço no grupo.

Pela sua natureza intrínseca, a criação artística é uma aprendizagem que acontece no contexto de experiências que se vive. Vivendo essa experiência, o aluno pode compreender, com a integralidade do seu ser, o que é deixar de “existir passivamente” e se tornar “ator”, atuar, dizer, interferir, modificar, criar.

No caso do Teatro/Dramatização, o ato teatral, implicando a totalidade da pessoa do  ator, é metaforicamente uma “discussão-reflexão-ação” sobre a vida, que se passa no espaço concreto e na dimensão simbólica do palco. Por isso, depois de uma representação, do ato simulado de manifestar o outro, o duplo, o alhures no presente e na realidade do palco, quando o indivíduo, que se torna “individuo-ator”, volta à vida quotidiana não é mais totalmente o mesmo, podendo assim, enriquecido pela sua criação e pela interação no grupo de teatro, melhor situar-se na vida em todos os seus setores, sobretudo na sua condição de ser cognoscente.  No processo de criação teatral, a pessoa recria-se a si mesma, pois no movimento das passagens “pessoa-ator-personagem” trabalha suas dificuldades, dúvidas e anseios através das vivências do personagem.

A criação, leitura,  dramatização de  Contos,    enquanto área afim ao Teatro e, igualmente, recurso mediador de aprendizagem, têm o poder de incitar a imaginação a viver os tempos fabulosos de ficções que narram as aventuras humildes e maravilhosas de homens de todos os lugares e de todos os tempos, que procuraram, em cenas imaginárias, através de seus mitos individuais e coletivos, inventar  realidades   para melhor enfrentá-las.

A Poesia, por sua vez, a linguagem pictórica verbal,  comum a todos os homens, possui o poder de guardar “as palavras da tribo”, que ressurgem através da sensibilidade. Palavras que guardam, como nos contos, o maravilhoso, narrações da vida, que os ajudam  a viver e reviver a infância, para ganhar energias e assim continuar a sonhar seus atos e serem capazes de realizá-los.
Ouvir, ler contos e inventar estórias, é utilizar as palavras para criar um personagem, constituindo pouco a pouco sua ossatura e sua carne. Num primeiro momento, o personagem só existe na linguagem, que deve ser suficientemente forte para dar-lhe vida e, eventualmente, existência própria. Além de propiciar uma aprendizagem vivenciada e intensiva das estruturas da língua materna do sujeito, inventar e escrever uma estória, constituindo assim um espaço e vida para os personagens, é um trabalho psicológico de dar forma criativa a si mesmo, mas no artifício de uma descrição exterior.

Como mediações no Atendimento Educacional Especializado-AEE em particular e na Educação em geral, o Teatro, o Conto, a Poesia, a Música e a Dança são, basicamente, instrumentos de criação de um “espaço do possível” - o espaço do Jogo.   Implica globalmente o aluno, seu corpo (tão esquecido no universo escolar !) e seu espírito, em uma aprendizagem do vir-a-ser, um aprender de si, do outro, das coisas da vida. Um aprender vivendo, indireto, sem ser confrontado às suas dificuldades, mas através do jogo, na magia da ficção, que fala da pessoa para a própria pessoa, sem nomeá-la, sem desvelar e, portanto, sem mobilizar máscaras e defesas.

Todos estes diferentes “palcos” de criação artística coexistem num “outro palco”, “o espaço transicional”, espaço psíquico onde interagem, como personagens, as vivências interiores e exteriores do sujeito, abrindo as portas para o imaginário e para a simbolização. Função através da qual ele dá significado às suas experiências, o que favorece o desabrochar da criatividade e possibilita intervenções mais criativas no  mundo.

O trabalho educacional com mediação da Arte  estimula a criatividade, contribuindo de modo indireto, porquê através da criação artística,   para que o aluno supere os obstáculos que entravam o pleno uso e brilho de sua inteligência e bem-estar no mundo.


ARTE E  ENTRE-LUGARES

“Eu gostaria de traçar formas ou estabelecer situações que estejam como que abertas ...
Meu trabalho tem muito a ver com um tipo de fluidez, um movimento de vai e vem sem aspirar a nenhum modo especifico ou essencial de ser.

Usei a arquitetura literalmente como referência, usando o sótão, o compartimento da caldeira e o poço da escada para fazer associações entre certas divisões binarias como superior e inferior, céu e inferno. 0 poço da escada tornou-se um espaço liminar, uma passagem entre as áreas superior e inferior, sendo que cada uma delas recebeu placas referentes ao negro e ao branco.”

Renée Green, artista afro-americana

Na elaboração deste texto, permiti-me ousar várias analogias entre propostas conceituais que me pareceram próximas.

Ocupou-me, especialmente, o conceito de “entre-lugares”, espaço de passagem entre margens, que no dizer de Bhabha (1, p. 22) , interpretando a instalação da artista Renée Green, seria

“A posição da escada como espaço liminar, situado no meio das designações de identidade, transforma-se no processo de interação simbólica, o tecido de ligação que constrói a diferença entre superior e inferior, negro e branco. O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que ele propicia, evita que as  identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais (grifo nosso). Essa passagem intersticial entre identidades fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta:..”

Interessou-me, particularmente, em função do meu exercício profissional, ao longo dos últimos quatorze anos, como professora de Educação Especial em rede de escolas municipais. Isso,  devido a maneira como os alunos com deficiência foram recebidos, e às vezes ainda o são, no ambiente escolar, o estranhamento que causam, majoritariamente nos adultos, como se fossem alienígenas pertencentes a outra cultura.   Ocorrem reações de profissionais que se dizem despreparados para trabalhar com “esse alunado”, a preocupação de pais de alunos “normais e sãos” com a integridade física e as atenções pedagógicos devidas  a seus filhos e outras tantas desculpas.

Desculpas que, na verdade, expressam a não aceitação da diferença, reações comuns para com as minorias,  muitas  e muitas vezes motivada pelo desconhecimento.

Forçados pela legislação, no entanto, a conviver com o aluno com deficiência, apesar de ainda encontrar resistência, venho presenciando mudanças importantes no comportamento das pessoas adultas,  que compõem a comunidade escolar e seu entorno, sobretudo quando se permitem conhecer, descobrir as potencialidades desses alunos tão diferentes.

As experiências que vimos conduzindo dos processos de criações artísticas coletivas,  compartilhadas entre alunos com e sem deficiência,  têm sido coroadas de êxito e revelado, tanto na intimidade do ateliê quanto à comunidade escolar em geral, capacidades insuspeitadas das pessoas com deficiência, as quais sempre tiveram suas identidades reduzidas à deficiência que possuem. O êxito a que nos referimos aqui é aquele verificado na evolução positiva do desenvolvimento global dos alunos, com ou sem deficiência.

Seria lícito pensar que a sala de aula da escola regular, onde acontecem os ateliês de criação artística coletivos,   por serem espaços de jogo, não poderiam funcionar, simbolicamente, como   “entre-lugares” proposto por Bhabha ,  onde  “...  A passagem intersticial entre identidades fixas [o “normal” e o “deficiente”- ressalva minha ] abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta...”(idem) ?

Permito-me propor outra analogia entre o espaço simbólico  do ateliê de arte, o “entre-lugares” e  o “mundo possível”, quando me reporto, novamente, a Deleuze, com seu conceito do “outrem” inesperado, aquele  que traz na bagagem o necessário para a construção de novas experiências identitárias, cuja chegada propicia  a abertura de espaço para um novo “ mundo possível” e assegura “...  as margens e as possíveis transições dessa nova estrutura possível de existência... Conceito filosófico que se ocupa de um estranhamento, de uma situação de experimentação de vida, trata de um acontecimento. Uma possibilidade virtual, retirada  do caos possível, trazida por outrem, atualizada no real, em uma mudança absoluta do pensamento...”.  Por sua natureza intrínseca como área  de jogo, de criação, o ateliê de Arte funcionaria, simbolicamente,  como um espaço propiciador de experiências atualizadas no aqui e agora, em vivencias compartilhadas  entre o aluno com deficiência - o “outrem”, o “viajante inesperado ”  -  seus colegas sem deficiências acentuadas e os profissionais. Experiências que propiciariam “mudanças absolutas de pensamento”.

Finalmente, como já feito alhures, em minha dissertação  de fim de curso para o diploma  de  “Maitrise”          en “Arte em Therapie et em Psychopedagogie”, (Université Rénè Descartes-Paris V, Paris, 1998),   permito-me, ainda, atualizar  e  associar  às outras analogias, o  espaço simbólico do ateliê de Arte  ao conceito  de “espaço potencial” de Winnicott.  Devido à natureza dos movimentos psicológicos dos sujeitos implicados na criação artística, a área de jogo do ateliê de Arte seria,  a representação concreta do “espaço transicional”, outra denominação dada pelo autor para o “espaço potencial” ,  no qual a pessoa pode atualizar continuamente as negociações entre a sua realidade interna e aquela externa, compartilhada por seus pares humanos. Atividade psíquica à qual estamos condenados  realizar eternamente, que, ao mesmo tempo,  testemunha e preserva nossa saúde mental, ligada à capacidade de simbolizar as experiências  vividas pelo sujeito e conferindo-lhes sentido.

O “espaço transicional ou potencial”  do ateliê , local de criações artísticas coletivas em Teatro, Conto, Poesia, Música e Dança,  é uma área de jogo, que propiciaria repouso mental e  onde os alunos poderiam, através da ficção  e das vicissitudes das experiências imaginárias dos personagens, preservar e atualizar  a saúde  mental, tutora da afetiva, cognitiva e  relacional, o que  contribuiria par abrir  espaços de abertura pessoal para acolher as diferenças e construir mundos do possível.

Espaço  possível, transicional ou potencial, entre-lugares,  onde ocorrem negociações,  movimentos intersticiais, úteros geradores de novas e complexas  identidades híbridas, culturas além,  irrepresentáveis,  novas representações do “outrem” e novas  formas de vida. Tudo a ver com o caos, o  desconstruir, com criar e com  o  fazer Arte !!!!

Para terminar, queremos  homenagear as crianças e os adolescentes, meus alunos que “Compreendem” tudo, mas tudo mesmo que foi aqui escrito, com um poema de Maiakovski :



GAROTO
Fui agraciado com o amor sem limites.
Mas, quando garoto,
a gente preocupada trabalhava
e eu escapava
para as margens do rio Rion
e vagava sem fazer nada.
Aborrecia-se minha mãe:
“Garoto danado!”
Meu pai me ameaçava com o cinturão.
Mas eu,
com três rublos falsos,
jogava com os soldados sob os muros.
Sem o peso da camisa,
sem o peso das botas,
de costas ou de barriga no chão,
torrava-me ao sol de Kutaís
até sentir pontadas no coração.
O sol se assombrava:
“Daquele tamaninho
e com um tal coração!
Vai partir-lhe a espinha!
Como, será que cabem
neste tico de gente
o rio,
o coração,
eu
e cem quilômetros de montanhas ?”




                                              
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


1. BHABA, (H.) : O Local da Cultura – Editora UFMG, Belo Horizonte, 1998
2. DAFOE, (D.) : Robson Crusoé: a aventura de um náufrago  numa ilha deserta – Companhia das Letrinhas, São Paulo, 2006
3. DELEUSE, (G.) , GUATTARI, (F.) : O que é Filosofia  -  Editora 34, São Paulo, 1997
4. DELEUSE, (G.) : Lógica do sentido -  Perspectiva, São Paulo, 2007b
5. LEPRI, (C.): Viajantes Inesperados – Saberes Editora, Campinas, Sp, 2012
6. MANTOAN (M.T.E.): Inclusão escolar: O que é? Por quê? Como Fazer? – Moderna, São Paulo, 2008
7. MOSTAFA, (S.P.), NOVA CRUZ, (D.V.): Para ler a Filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari -  Alínea Editora, Campinas, Sp, 2009
8. TOURNIER, (M.) : Sexta-Feira ou a vida selvagem – Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2001
9. VYGOTSKY, (L.S.): Imaginação e criatividade na infância – SMF Martins Fontes, São Paulo, 2014
10. WINNICOTT, (D.)
Jeu et Réalité: l’espace potentiel – Gallimard, Paris, 1975  
O brincar e a realidade - Imago, Rio de Janeiro, 1975


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Nossas reflexões sobre a Arte como mediação no trabalho pedagógico, e as práticas daí decorrentes, foram inspiradas, entre outras,  em leituras de artistas, que nos fizeram generosamente parte de suas ideias e  experiências afetivo-emocionais, implicadas nos processos de criação artística. Assim, citando apenas alguns,  muito nos enriqueceram as propostas de C. Stanislavsky sobre o trabalho do ator e a  construção de personagens, bem como as narrativas de experiências no Teatro de C. Dullin. Esses relatos muito nos auxiliaram a compreender a complexidade dos processos psicológicos implicados no trabalho de criação e, portanto, os riscos e benefícios decorrentes do uso de dispositivos artísticos em ambiente escolar.

Outros artistas, já  dedicados a  utilizar de sua arte em contextos psico-sócio-educativos, nos brindaram com reflexões e proposições metodológicas que nos foram sumamente importantes ao longo de nossa pratica profissional, nas áreas do Conto, Poesia, Música e Dança. São eles, J.P. Ryngaert, que muito trabalhou nas escolas francesas com Jogo Dramático ou Dramatizações e a imensa contribuição de G.Jean, o qual levou os Contos e a Poesia para instituições diversificadas de Saúde e Educação.    E. Lecourt muito nos ensinou sobre o potencial da Musica, tocada ou cantada, no  trabalho com pessoas com deficiências graves. Bailarina e psicóloga, não poderíamos deixar de citar F.Schott-Billmann, nossa orientadora na Universidade de Paris, que nos ensinou, com muito rigor, as propriedades equilibrantes, para os seres humanos, dos rituais, cantos e danças coletivos, praticados sob o comando de xamãs e desde tempos imemoriais,  pelas sociedades tradicionais.  Praticas ancestrais, cujas virtudes curativas, educativas e preventivas em saúde mental estão,  atualmente,  sendo cientificamente estudadas nas mais prestigiosas academias.

S. Freud, C.Levi-Strauss, D. Oberlê, C.R. Rogers, R. Courtney, D. Winnicott, L. Vygotsky,  pesquisadores de diferentes áreas e filósofos, que se ocuparam em refletir sobre a capacidade de simbolização, a Arte,  a Teoria do Jogo ( no sentido do brincar), da Criatividade e da Imaginação e suas relações com a saúde, o desenvolvimento humano e seu bem-estar no mundo, contribuíram de maneira decisiva para que compreendêssemos a sua importância no trabalho com seres humanos, sobretudo em situação de fragilidade.

Não podemos não nos referir ao Mestre Paulo Freire, com suas ideias fundamentais sobre a eficácia da amorosidade, do diálogo e da autonomização em qualquer prática pedagógica.

No intuito de contribuir para aqueles que desejem aprofundar alguns conceitos e práticas, preparamos a  pequena bibliografia abaixo:

COURTNEY (R.): Jogo, teatro e pensamento – Perspectiva, São Paulo, 1981
DULLIN (C.): Souvenirs et notes de travail d’un acteur – Odette Lieutier, Paris, 1946
FOUCAUT (M.): Os corpos dóceis in Vigiar e Punir- Editora Vozes, Petrópolis, 2002
FREIRE (P.): Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa – Paz e Terra, São Paulo, 2002
FREUD (S.):Totem et tabou – pbp, Payot, Paris 1996
JEAN (G.): Le pouvoir des contes – Casterman, Tournai, 1990
LECOURT (E.): La musicothérapie – Cesura, Lyon, 1989
LEVI-STRAUSS (C.): “A eficácia simbólica” in Antropologia Estrutural, I, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1973
OBERLE (D.): Créativité et jeu dramatique - Méridiens Klincksieck, Paris, 1989
ROGERS (C.R.) : Por uma teoria da criatividade in “Tornar-se pessoa” – Martins Fontes Editora, São Paulo, 1968
RYNGAERT (J-P.): Le jeu dramatique en milieu scolaire – Editions Universitaires, De Boeck Université, Bruxelles, 1991
SCHOTT-BILLMANN (F.) : Quand la danse guérit – La Recherche en Danse, 1997
STANISLAVSKY (C.):
A preparação do ator – Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968
A construção do personagem – Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976
VYGOTSKY, (L.S.): Imaginação e criatividade na infância – SMF Martins Fontes, São Paulo, 2014
WINNICOTT (D.) :
Processus de maturation chez l’enfant – Payot, Paris, 1970Jeu et Réalité: l’espace potentiel – Gallimard, Paris, 1975   
O brincar e a realidade - Imago, Rio de Janeiro, 1975