Desconstruir e recomeçar
um espaço para retomar o caminho da procura; um tempo para chegar mais perto do possível. Ou, melhor dizendo...escrever a minha tese.
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
O Zica e o Risco da Pandemia do Preconceito
Diante do caos instalado pelas consequências incomensuráveis
da picada do mosquito Aedes aegyptie e
da ausência de uma percepção dos diferentes fatores econômicos, políticos e
sociais que resultam em uma epidemia, corre-se o risco de se criar uma pandemia
de preconceito e discriminação.
A mulher torna-se alvo preferencial de
preocupações exclusivamente sanitárias em razão das consequências das doenças
transmitidas pelo mosquito às gestantes. Tais preocupações ultrapassam os
limites da prevenção e do cuidado com a saúde das mulheres e invadem o campo
dos Direitos Humanos, focalizando a microcefalia como a grande ameaça por causar
a deficiência, propalada como a maior das tragédias.
Nesse contexto, a microcefalia é apresentada
como o fator de risco à população. As mulheres são interpeladas a não
engravidar nos próximos anos e alertadas para a desgraça individual de ter um
filho com deficiência, instalando-se uma situação de pânico e insegurança que
conduz ao aborto como solução e não como uma política de saúde pública,
fundamentada nos direitos reprodutivos das mulheres.
Estamos diante de uma dupla violência contra os
direitos das mulheres e das pessoas com deficiência. Ignoram-se os avanços
conquistados por meio das políticas de igualdade de gênero e de inclusão das
pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência voltam a ser apontadas como
o problema, negando-se o princípio constitucional da deficiência como parte da
diversidade humana.
Após dez anos da publicação da Convenção dos
Direitos das Pessoas com Deficiência – ONU/2006, ao invés de se fortalecer a
concepção social e política da deficiência que assegura a igualdade de direitos
e promove a inclusão, motivado pelo surto de microcefalia, promove-se o recrudescimento
do estigma da deficiência que imputa ao individuo a inadequação, a anomalia, a
incapacidade. Este é um evidente retrocesso ao modelo clínico superado pela
Convenção que define a deficiência como um conceito em evolução e não admite a discriminação
com base na condição de deficiência.
É bastante oportuno recordar que o modelo
clínico da deficiência serviu para justificar a segregação das pessoas com
deficiência que por um longo período foram isoladas dos diferentes ambientes
sociais, enquanto a sociedade se eximia de promover mudanças estruturais para
assegurar as condições de acessibilidade e de participação.
Eis aí o risco iminente da pandemia do
preconceito e da discriminação. Como enfrentar esse risco? Responsabilizando as
mulheres? Estigmatizando as pessoas com deficiência? Acreditamos que não. O
caminho não é reduzir direitos, mas fortalecer as políticas públicas
intersetoriais, ampliando o acesso à informação, à proteção e aos cuidados.
Martinha Clarete
Dutra dos Santos
Claudia Pereira
Dutra
domingo, 6 de dezembro de 2015
Errância e Sentido
Universidade
Estadual de Campinas – UNICAMP
Faculdade
de Educação
Programa
de Pós-Graduação em Educação
Laboratório
de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença – LEPED
Disciplina:
Seminário Avançado – 2º Semestre de 2015
Professora: Dra
Maria Teresa Eglér Mantoan
Aluna:
Eliane de Souza Ramos
Errância
e Sentido
Elaine? Eliane? Eliana?
A errância das inúmeras
identidades que assumo e abandono começa em meu nome. Desde cedo aprendi a
conviver com ela. Quando alguém vai me chamar, um dos meus eus me alerta: algo diferente de Eliane virá!
Pedagoga? Fonoaudióloga?
Professora? Tradutora e intérprete de Língua Brasileira de Sinais? Assessora?
Consultora?
Sou fonoaudióloga e licenciada
em Biologia. Onde seria o meu consultório? Não tenho um. Fonoaudióloga que não
tem consultório? Estranho...
Bragança Paulista? Campinas?
Amparo? Brasília? Posso ser de todas estas cidades em uma só semana.
Espírito independente,
autônomo, intenso, meigo... Casada? Casada com Flavio. Um homem mais velho e
isto não ganha a menor relevância nos
dias em que vivemos juntos. Com ele limpamos a casa, lavamos roupa e saímos em
busca de um novo suporte para guardar a esponja de lavar louças.
Separamos o lixo reciclável.
Temos a felicidade de conviver
com Neca e Tucha, nossas cachorras que passam dos 13 anos. Com Flavio demos
vida à Luísa que nos devolve renovada a todo o momento. Com quem ela se parece?
Mistura. Diferenciação.
Mãe de Luísa que tem um ano e
três meses e ensaia seus passos independentes pela casa enquanto redijo este ensaio.
A amamentei. Amo, cuido e me encho de brilho nos olhos mesmo quando a noite de
sono foi apenas de 2 horas.
Trajetória profissional
intensa combinam com maternidade
também intensa? Ou não é uma “boa mãe”, ou não é “uma profissional competente, suficientemente
dedicada”. Faltará muito ao trabalho. O cotidiano desmonta este raciocínio de
alguns.
São muitos os lugares citados por Bhabha (2013) que
ocupo. Neles me vinculo e desprendo das representações que oferecem aconchego e
segurança aos que comigo convivem, e também a mim.
Momentaneamente. Pois em um
próximo encontro estas representações já não mais servirão para o mesmo fim:
aconchegar e tornar-se seguro. Quanto mais sou representada, mais me
diferencio.
Eu não sou identidade. Nem fixa,
nem fluida. Apenas me ligo a ela para em seguida dela espacar e continuar sendo diferença. A identidade é hóspede da
minha diferença. Quando acolho uma identidade devenho-outra Eliane. Nem a
identidade nem eu-Eliane, se tornam as mesmas após este encontro. É na mistura
que me diferencio e a identidade se mostra limitada, pequena diante da
imensidão que habita em mim.
Nos dias em que vivo, a
hospitalidade de Derrida (2003) faz-se um apelo permanente. As reservas e os
limites da minha pátria, casa, grupo de pesquisa, corpo e alma dão o contorno
para aquilo que será atualizado. Hospitalidade não é sinônimo de solidariedade,
pois esta última implica na hierarquização das relações.
Quem se solidariza exerce
papel superior ao solidarizado. Quem é anfitrião na hospitalidade se mistura ao
hóspede sem identificá-lo. A hospitalidade pode ser vivida com quaisquer outros. Com objetos, animais, plantas...
conosco também.
Para devir-outro não preciso
necessariamente de outra pessoa, preciso inevitavelmente me misturar a algo que
dispare em mim a minha potência maior.
A disciplina “Escola e Inclusão – novos
territórios educativos” da qual participei durante este semestre enriqueceu as
minhas possibilidades de mistura, mas
elas não são mensuráveis. Não me vejo em condições de pontuar o que esta
disciplina, apenas ela, me oportunizou. Mas, posso dizer com convicção que nela
me diferenciei.
Durante o ano de 2015 que agora chega ao fim, fiz conexões que elevaram o
meu pensamento à sua mais elaborada compreensão acerca das políticas
identitárias nas quais alguns, equivocadamente, se apoiam para defender uma
educação inclusiva. Trabalharei com uma citação de Bhabha, a fim de
compartilhar esta elaboração.
O lugar do Outro não
deve ser representado, como às vezes sugere Fanon, como um ponto fenomenológico
fixo oposto ao eu, que representa uma consciência culturalmente estrangeira. O
Outro deve ser visto como a negação necessária de uma identidade primordial –
cultural ou psíquica – que introduz o sistema de diferenciação que permite ao
cultural ser significado como realidade linguística, simbólica, histórica. Se,
como sugeri, o sujeito do desejo nunca é simplesmente um Eu Mesmo, então o
Outro nunca é simplesmente um Aquilo Mesmo, uma frente de identidade, verdade
ou equívoco.
Para aqueles como nós, membros do Laboratório de Estudos
e Pesquisas em Ensino e Diferença – LEPED, que defendemos a educação inclusiva
pautada na ideia de diferença humana,
a tarefa de representar o lugar do outro
torna-se dispensável. Há muitas pessoas e instituições que a esta tarefa se
dedicam.
Família, igreja, escola, organizações não governamentais,
organizações governamentais, todas elas, dedicam boa parte dos seus esforços à
produção de representações que se expressam pela identidade. Quando o tema é a inclusão prevalece em nossa sociedade um
projeto político, social e cultural do qual emergem os incluídos e os excluídos.
Quem são os incluídos
da nossa sociedade? A pessoa branca; heterossexual; pertencente à classe média;
que tem “boas notas” na escola; que se “comporta bem” em casa, na escola e em outros
espaços sociais; que não tem deficiência; que é “bonita” e corresponde
satisfatoriamente às expectativas de consumo produzidas pela lógica do capital;
que se veste convencionalmente e segue aos desígnios da moda; que acredita em
Deus e professa uma fé, preferencialmente cristã, entre outros atributos.
Não há
novidade quanto às características da pessoa incluída. Também não há novidade no fato de que muitas pessoas não
correspondem a tais características. O que se pode fazer então?
Atualmente identifico dois movimentos que produzem
distintas propostas educacionais inclusivas. Um deles produz os excluídos, visto que os incluídos já foram “postos à mesa”.
Chamarei este movimento de identitário.
Outro
movimento, ao qual pertenço, defende que é preciso “negar a necessidade de uma identidade primordial” (Bhabha, 2013,
p. 95). Trata-se do movimento que
considera a diferença humana em percursos sociais e culturais, também
educacionais, que têm como consequência a inclusão. Sobre estes dois movimentos
discorrei nas próximas linhas.
A produção dos excluídos
tem sido entendida, de forma enviesada, como a consideração e a defesa dos
direitos destes excluídos a partir da diferença
humana. Quando uma sociedade define os atributos dos incluídos consequentemente define quais são os atributos dos excluídos e quem são eles. Excluídos são todos aqueles que não
correspondem aos atributos dos incluídos,
comumente denominados normais.
Não há muito
que se debruçar sobre esta questão para que a sua lógica seja desvendada. Neste
movimento identitário as representações
são criadas, impostas e mantidas. Mas, este movimento
não é inocente. Como nos ensina Tomaz Tadeu da Silva (2008), “as identidades
não são inocentes”. Tampouco desprovidas de interesses políticos, econômicos,
financeiros, sociais, culturais e educacionais.
Aquele que
produz o excluído tem por objetivo promovê-lo, a fim de que ocupe o lugar do incluído fazendo com que os atributos
sejam alterados, invertidos. Neste movimento
identitário deseja-se que os atributos dos incluídos sejam substituídos pelos atributos dos excluídos, para que os primeiros passem
a ser entendidos como norma e tenham legitimidade.
A defesa pela consideração da diferença humana não se avizinha aos movimentos identitários. Não há como chegar à diferença trilhando
caminhos definidos pelas identidades.
Quando me reporto ao “movimento negro”, “movimento down”,
“movimento surdo”, “movimento pela causa operária”, “movimento feminista”, estou
tomando como ponto de partida a lógica identitária.
Destes movimentos emergirão mais e mais aqueles que são os incluídos e aqueles que são os excluídos,
numa lógica de oposição. A pessoa negra não é o contraponto da pessoa branca. A
pessoa branca não é o contraponto da pessoa negra. Pessoas não são
contrapontos. Pessoas são diferença provisória.
A inclusão pautada na política identitária mantém o incluído
e promove o excluído. É inegável
que são muitas as conquistas dos movimentos sociais. Conquistas compensatórias,
de concessão, exceção e de diferenciação de um grupo constituído a partir de um
atributo semelhante dos membros que o compõem.
As conquistas
dos movimentos identitários promovem
os excluídos ao mesmo tempo em que os
aprisiona a esta identidade que se aperfeiçoa, mas que não deixa de postergar
as desigualdades. Um excluído
promovido pela lógica identitária e do direito à cidadania não será jamais o incluído, o normal. Será sempre um excluído
promovido.
Para alguém como nós do LEPED, que descobrimos na ideia
de diferença humana elementos tão
potentes que consideram a univocidade dos seres e a intensidade da atualização
que habita cada um de nós, não há alternativa se não abandonar definitivamente
tudo aquilo que se avizinha à lógica identitária.
Com isso as identidades deixarão de existir? Evidentemente que não. Muitos
continuarão, pelas justificativas mais surpreendentes, a investir na produção
de uma inclusão pautada nas identidades.
A política identitária,
assim como as identidades, não é fixa. Ela se atualiza. Recentemente tenho
visto pessoas (mal)tratarem a ideia de diferença
humana, utilizando os mesmos referenciais teóricos com os quais trabalhamos,
Gilles Deleuze e Félix Guatarri, de maneira bastante equivocada. O exercício
intelectual tem ocorrido no sentido de buscar na identidade a diferença. Buscar
a diferença no diverso, no diferente.
A simplicidade, a precariedade e o caráter efêmero da diferença são tamanhos que precisam ser
articulados à identidade para se fazerem valer como fundamento da inclusão identitária. Constructos
rebuscados comumente ganham confiabilidade no campo educacional, também em
outros territórios.
Simplicidade e precariedade não é sinônimo de
inconsistência. A diferença entendida como cada pedacinho que nos constitui e que não cessa de se atualizar, faz
sentido para mim e para tantos outros. Também para aqueles que defendem
políticas identitárias para criar os excluídos, em seguida os elevar à
posição de “excluídos promovidos” (da
qual jamais sairão), e, por fim, serem reconhecidos pela sociedade como grandes
feitores tomados de bondade, sabedoria e luz.
A política da
diferença não oferece subsídios para
que os sujeitos dos movimentos
identitários, sempre atualizados, intelectualmente evoluídos e iluminados, sigam
com o projeto de fazer a inclusão pela produção do diferente.
O orgulho pela capacidade intelectual evoluída não
permite aos fabricantes dos excluídos
promovidos abandonarem a ideia de diferença,
afinal precisam mostrar-se atuais nos constructos teóricos que conhecem e
dominam. Como- optar pela defesa da diferença
humana e manter-se na lógica identitária?
Separando de novo e novamente a teoria da prática. Criando e fortalecendo o
abismo existente entre boa parte do se produz na academia e a vida vivida.
Os fabricantes dos excluídos
promovidos demonstram propriedade para tratar da ideia de diferença no
plano conceitual, teórico, mas a maltratam quando aplicam tal ideia ao contexto
educacional. A ideia de diferença não admite a consideração do diferente e do
diverso. Tampouco que projetos educacionais, sociais e culturais promovam
práticas diferenciadas para alguns: os diferentes e os diversos.
Não há encontro teórico e prático possível entre os que
defendem as identidades e os que
defendem a diferença. Não há o que se
debater a este respeito. São perspectivas distintas e que promovem a criação de
pessoas que se localizam e se vêm na sociedade de maneira absolutamente
distinta. Quanto a isto, tenho sentido falta de rigor e consistência em muitas
de nossas argumentações.
Entre os que defendem a inclusão escolar na perspectiva identitária ou na perspectiva da diferença existem particularidades que
não podem ser desconsideradas, desprezadas e apagadas. Ao contrário, estas
particularidades precisam ser marcadas, pontuadas, esclarecidas e postas à
mesa.
Os que
defendem a política identitária têm
feito tal exposição e defesa com muita dedicação, por meio de um discurso que
sensibiliza o ouvinte. Vêm ocupando espaços nos diferentes setores da nossa
sociedade e ganhando adeptos. Certamente eles são mais em número do que nós que
defendemos a perspectiva da diferença
na luta pela inclusão.
Em nossa sociedade temos e teremos mais defensores da
perspectiva identitária do que
defensores da perspectiva da diferença.
Porém, a perspectiva identitária será
desmontada toda vez que um defensor da perspectiva da diferença a tratar com devido rigor, consistência e esmero.
O discurso
das identidades não se mantém diante da potência inovadora e imanente da diferença. Sempre que uma identidade for descontruída pela diferença, tratará de se renovar pelos
mesmos processos pelo qual se criou. Esta identidade
retornará ao discurso e à prática como algo novo, renovado, mas que se mantém
na lógica da produção social e cultural daquele que é e será o incluído, e
daquele que é e será o excluído. Assim, os movimentos
identitários seguem com seus trabalhos se promovendo e sendo reconhecidos
pela sociedade. A perspectiva identitária
vive e se beneficia dos excluídos que produz.
Encontro hoje
três conexões que me fazem melhor compreender a perspectiva da diferença como sustento para a inclusão
educacional.
O primeiro deles refere-se ao fato de que a diferença não é compatível com propostas
educacionais universais, ou ainda, globais, portanto não é compatível com a
criação de um sistema educacional global. Isto porque este sistema seria
inaplicável e não passaria de um “amontoado” de propostas desconexas.
As propostas educacionais universais em vez de serem francamente
repressivas, são empíricas e rotineiras, e não correspondem a qualquer ideia de
meta a atingir.
O filósofo contemporâneo René Schérer (2009) esclarece que além de buscar
por determinadas modificações técnicas que incidem, em particular, sobre os
métodos pedagógicos, a possibilidade de uma nova ideia educativa apresenta-se à
luz de metas gerais a atingir. Para ele, estas metas não estão apenas no
futuro.
É impossível nos questionar sobre o que, a partir da criança, o homem
virá a ser, sem tratar a criança como homem (SCHÉRER, 2009, p. 46).
Neste sentido, é preciso compreender que somos movidos por aquilo que nos
afeta. Schérer (2009) afirma que produzimos, criamos a partir de nossas
paixões. Paixões estas que não são entendidas como “falta”, como algo que não
será jamais alcançado como defende a psicanálise.
A paixão para Schérer deve ser entendida como produção, logo, não deve
ser reprimida como acontece nos programas educacionais universais, globais. Ao
contrário, as paixões devem ser incentivadas e organizadas. Organizadas pelas
próprias pessoas que por elas se movem. A escola deveria então, oferecer aos
seus alunos uma “bússola” de orientação das paixões.
Schérer (2009) aponta para uma educação unitária:
A educação unitária é animada por um princípio que elimina qualquer dever
inconciliável com um outro, ou o conflito de um dever com um desejo, pela
simples razão que ela ignora, em todos os níveis e a qualquer momento, a coação.
Portanto, a questão da meta atingir pela educação é, antes de tudo, a do acordo
entre a atração e a ordem, segundo a qual tal associação só é possível quando
ela é desejada apaixonantemente, necessária para a satisfação das paixões. Ao
mesmo tempo e imediatamente, concebe-se que tal postura implique uma
modificação de sentido relativamente à finalidade da educação. A meta a atingir
deixa de ser um objetivo distante – suscetível de ser apresentado, de forma
razoável, à criança (acrescento: ao aluno), ao propor-lhe, como ideal, seu ser
no futuro – para se realizar desde o momento presente (SCHÉRER, 2009, p. 46).
A segunda importante conexão que
tenho alimentado no estudo dos textos de Schérer, refere-se ao fato de que a
perspectiva da diferença para a
educação inclusiva não pode ser pensada a partir da razão, mas sim, a partir da
experiência sensível. Por isso emana das paixões, que orientadas pelo próprio
sujeito, encontram-se com as paixões das outras pessoas, produzindo a
harmonização destas (paixões) na sociedade.
Para Schérer (2009), nossos desejos,
nossas paixões apresentam-se como “tigres enfurecidos” em civilização, mas são,
em si mesmos, irreprimíveis e incoercíveis. O contexto educacional, na
perspectiva do incentivo e da orientação das paixões, e da atualização da
diferença, não se baseia no sacrifício nem na subordinação destas (paixões e
diferença) a um interesse superior. Tampouco no apelo a um altruísmo sentimental,
tais como a solidariedade ou a fraternidade. Nem se propõe a operar essa
transformação priorizando o ser razoável em detrimento do ser sensível. Nesta
perspectiva, prevalece a capacidade superior de desejar.
Por fim, a terceira conexão revela
que a inclusão pensada a partir da diferença
humana e das paixões se dá nos acontecimentos que temos a oportunidade de viver
na escola e fora dela.
Quando vivem acontecimentos,
alunos e professores singularizam-se, diferenciam-se, criando brechas que
driblam todas as formas de categorização. Quanto mais a diferença de cada pessoa se encontrar e se conectar à outra diferença, mais fecundo será o plano de
imanência no qual pensamentos criativos se proliferarão. Quanto mais aberto o plano
de imanência, maiores as chances do acontecimento se dar. Sendo o acontecimento
o movimento pelo qual a singularidade se faz, quando mais acontecimentos
vivermos, mais autênticos serão os nossos pensamentos e as nossas aprendizagens,
também as nossas propostas educacionais.
Ao contrário do que se possa
imaginar, não é a semelhança que faz proliferar o pensamento, a inteligência, a
linguagem, a língua, as emoções e os afetos na sua mais intensa produção, mas
sim a diferença humana.
Acontecimento
refere-se ao movimento pelo qual a singularidade é produzida. Para Deleuze,
possibilidades de criação orbitam o nosso ser e, ao se depararem com
virtuais/elementos que as intensificam, deslocam-se em movimentos produtores de
outras/novas singularidades.
Estes
virtuais/elementos podem ser pessoas, objetos, movimentos, diferentes
expressões pela linguagem, encontros consigo mesmo, silêncios, vozes. O acontecimento
para Deleuze (2010) é o processo pelo qual se fabrica a singularidade.
Assumir
a aula como um acontecimento é necessário, pois considero a singularidade uma
construção indispensável para a composição da multiplicidade, e
consequentemente da diferença humana.
A singularidade potencializa o processo de proliferação da diferença. Sem problematizar os processos de produção da diferença por meio do acontecimento,
estaremos mais vulneráveis às ciladas da categorização, da homogeneização e às
políticas identitárias.
O acontecimento
não pode ser previsto, antecipado e provocado. Por este motivo estaria então
esta perspectiva esvaziada de sentido? Penso que não, pois o acontecimento pode
ser impedido e a esta possibilidade vou me ater.
Na
busca por alguns dos elementos impeditivos do acontecimento retomei o meu
trabalho de mestrado no qual compreendi, apoiada em Rancière (2005), que a
distância entre alunos e professores que escola e a sociedade desejam
minimizar, é aquela que a sustentam no ato educativo e que não cessam de
reproduzir.
Tal
distância pode ser visualizada sem esforços entre os incluídos e os excluídos. Aqueles
que defendem uma política identitária vivem
desta distância, logo, dificilmente abrirão mal de tal perspectiva.
Se
desejarmos que os alunos alcancem a mesma aprendizagem na escola, mesmo que
seja no ensino diferenciado para alguns como defende a perspectiva identitária, logo, para os diferentes,
localizaremos a desigualdade como um ponto de partida e a igualdade como um
objetivo a ser alcançado.
Para
Rancière (2005), a igualdade de entendimento não é o resultado de um processo
de ensino. A igualdade deve ser colocada antes, pois deve ser compreendida como
a capacidade que todos temos de produzir conhecimentos, à nossa maneira.
Quando
um professor convive com seus alunos considerando em cada um deles a capacidade
de aprender já no início do ato educativo, ele amplia as oportunidades de
aprendizagem as quais terão acesso todos os alunos. Como consequência deste
processo de ensino, acontecerão movimentos dos mais distintos de transformação
da diferença que constitui cada ser.
Não
se deve confundir esta transformação constante da diferença com aquilo que chamamos de desigualdade. A diferença não
pode ser classificada como igual ou desigual porque se modifica constantemente.
Na escola inclusiva, o professor não trabalha com desigualdades na
aprendizagem, mas com a diferença que
se revela em cada aluno durante as situações de ensino.
Para
Rancière (2005) educar pode significar duas coisas absolutamente opostas.
Potencializar, reproduzir e representar a incapacidade do outro pelo próprio
ato que pretende reduzi-la postergando o embrutecimento, ou forçar uma
capacidade à sua proliferação, mesmo que ela nos pareça incompreensível,
gerando dobras, mutações, deslocamentos que levam à emancipação intelectual
pela diferença.
Acredito
que o acontecimento emancipa. Quando a aula promove a articulação entre
elementos/virtuais que povoam nosso ser (Deleuze, 2010), temos a oportunidade
de potencializá-los gerando novas/outras singularidades, e, portanto, a mutação
da diferença.
Ao
contrário, quando o ensino oportuniza a reprodução do mesmo, a mesmidade, por
meio de atividades que localizam a igualdade das aprendizagens como um ponto de
chegada, ele embrutece o aprendiz. O acontecimento é então impedido de
fazer-se.
Como
identificar quais são os elementos que podem impedir o acontecimento, a fim de
evitá-los durante uma aula? Esta identificação seria possível diante da
imprevisibilidade do acontecimento?
Em meio a estas perturbações
sinto-me motivada a localizar a aula em um plano de imanência aberto às
conexões entre a Filosofia, a Ciência, a Arte e a Vida. Compreendo o plano de
imanência como um horizonte de criação em que a experiência vai se
diferenciando de acordo com cada aluno, nas situações de ensino criadas pelo professor.
O acontecimento
será vivido por cada pessoa conforme as oportunidades de criação que orbitam o
plano de imanência. Na aula, o plano de imanência potencializa os percursos de
criação dos envolvidos no processo de ensino, possibilitando a transição entre
o conhecido e o desconhecido pelo aluno e pelo professor. Nas palavras de seu
criador, Gilles Deleuze, sem um plano de imanência nós nos perderíamos no
infinito do pensamento e permaneceríamos no caos.
Deleuze (1977) nos convida a
viver a realidade de forma atenta e constante na relação inseparável com a
natureza. A vida é imanência. Para isso, é preciso que ampliemos nossas
percepções da realidade por meio dos sentidos, sem nos localizarmos no exterior
dela, mas sendo parte dela. Para Deleuze, a busca pelos pequenos detalhes é o
que de fato importa para a manutenção do pensamento criativo.
A imanência, termo criado por
Deleuze, sugere conexão com a realidade, com as pessoas, objetos,
sensibilidades e afetos. Conosco mesmo. Já a transcendência conduz o professor
ao imaginário, ao ideal, ao aluno preso a uma identidade fixa, portanto, a
transcendência distancia o professor do seu aluno real, e consequentemente,
impede que o trabalho pedagógico seja construído no movimento constante de
transformação da diferença humana. Só
será possível viver acontecimentos em uma aula, quando professores percorrerem
planos de imanência com seus alunos reais.
Os estudos de Deleuze revelam
o sentido da diferença humana. Esta é
singular, única e se auto-diferencia constantemente.
Atenta ao fato de que a
univocidade e a singularidade são próprias dos seres humanos me recuso a pensar
sustentada em categorizações, generalidades, que inserem etiquetas que
identificam a quem quer que seja. Sendo a diferença algo que se multiplica e segue
diferindo, não cabe aplicar a ela qualquer sentido exterior.
Por isso tudo, nem Elaine, nem
Eliane. Nem fonoaudióloga, nem pedagoga. Sou simplesmente diferença e é isso que defendo para todos. Defendo que continuem
sendo diferença e alcancem a sua mais
aprimorada versão, sempre, hoje e novamente.
Referências
BHABHA. H. K. O local da cultura. 2ª Edição. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013.
DELEUZE. G. GUATARRI. F. O
que é a Filosofia. São Paulo. Editora 34, 2010.
DELEUZE. G.
GUATARRI. F. Kafka por uma literatura menor. Rio de Janeiro. Editora
LTD, 1977.
DERRIDA. J. Anne Dufourmantelle convida Jacques
Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
HALL. S; WOODWARD. K.
Identidade e diferença – a perspectiva dos Estudos Culturais. Org. Tomaz
Tadeu da Silva. 8ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 2008.
RANCIÈRE. J. O Mestre
ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ª Edição. Belo
Horizonte. Autêntica, 2005.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2015
GRUPO DE ESTUDOS
LIVRO : MISCELÂNEAS
Ismenia Carolina Mota Gomes Bosco (Carol)
ESPAÇOS DO POSSÍVEL : ESCOLA, DIFERENÇA, ARTE E INCLUSÃO
“A Arte não é um espelho para
refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”
Maiakovski
A CAIXA MÁGICA
O local é uma escola pública de Educação Infantil, Ensino
Fundamental, Educação de Jovens e Adultos, Alfabetização de Adultos, pouco
importa ! O que realmente conta é estarmos numa sala de aula, em círculo,
formado por crianças ou jovens ou adultos, todos sem distinção, sentados em torno de uma área central onde
repousa uma caixa tangível, quadrada e vermelha, que é mágica.
O lugar central do
círculo é a área do sagrado, das
celebrações, para onde converge a imaginação de cada um dos participantes.
Dentro da caixa mágica, foram depositados objetos, lugares, personagens e
sentimentos, todos sempre imaginários,
os quais constituem o sagrado criativo de cada um. Os objetos imaginários
passam a viver na Caixa Mágica e, ao longo do ano escolar, são revisitados de diversas e diferentes
maneiras, cantados, dançados, dramatizados, desenhados para, finalmente,
tornarem-se Personagens que passam a habitar uma história criada coletivamente pelos participantes do
ateliê. História que pode ser contida e
contada em um livro, um cartaz, uma peça de teatro ou em
todos estes formatos, mas sempre passando pela
expressão escrita e falada de um Conto.
Produzido por um pequeno instrumento de origem asiática,
ouve-se o retinir de um som de “PIMMMMM”,
o qual pode remeter ao som uma brisa suave percorrendo montanhas, a sinos longínquos que badalam e
remetem a lembranças remotas perdidas nos meandros das memórias presentes e
ausentes. Todos o recebem de olhos fechados, sem falar, apenas ouvindo. Aliás,
no ateliê, procura-se deixar as palavras faladas descansarem. Em seguida, todos se
olham nos olhos e repassam um para o outro esse olhar, e quem o recebe repassa para o seguinte, que o recolhe
e o repassa, assim sucessivamente, até que se fecha o círculo. Recomeça-se,
agora com o ouvido, o qual deve ser igual e cuidadosamente repassado uns para
os outros, colando-se orelhas com orelhas, até que novamente o círculo se
fecha. Com essas “atitudes
simbólicas”, os presentes “dizem” que
estão juntos, cúmplices, atentos uns aos outros.
Pronto ! Levantam-se todos e se espreguiçam, o ritual de
abertura do ateliê está concluído. O inconsciente de cada um já se encontra
informado que aquelas pessoas estão em situação de jogo, de simulacro e
habitam, mesmo que temporariamente, o
espaço concreto e subjetivo do Imaginário.
Com essa informação crucial, ele, o inconsciente, pode liberar-se e
liberar os materiais importantes das vivências e experiências que vão
constituir os frutos da criatividade artística dos participantes. Criações
materializadas em objetos, gestos, movimentos, cantos, falas e execuções musicais que traduzem e revelam,
paradoxalmente sem revelar, portanto, sem expor, as peculiaridades e necessidades de cada um.
Especificidades no modo de aprender, de se comunicar e de estar no mundo, que
se expressam, sobretudo, no modo como
cada participante habita o espaço de jogo do ateliê. Espaço este, que por sua
natureza intrínseca, respeita as
diferenças de todos, simplesmente porque, para a área de jogo,
obrigatoriamente, cada um pode trazer o
que realmente é, no aqui e agora de sua criação artística.
Realiza-se a atividade de criação do dia, a qual é, em suas linhas gerais, planejada com
antecedência. No entanto, com frequência, no desenrolar das ações o
planejamento prévio é modificado pelos participantes, os quais, por motivos subjetivos de um ou de vários deles
ou por imposição da própria criação coletiva, costumam enveredar por caminhos
insuspeitos, mas sempre pertinentes às necessidades do grupo naquele dia e
momento. Cabe ao professor-coordenador do ateliê estar atento e sensível.
As atividades de criação podem ser uma dança e ou um jogo
dramático, um canto, tocar instrumentos e ou cantar, inventar um conto e dramatizá-lo com ou sem fantoches, enfim as possibilidades e combinações são
quase infinitas, como a vida, aliás !
Em ateliês de Teatro,
Jogo Dramático, Conto, Música, Dança, Poesia realizados no ambiente escolar,
grande parte dos materiais utilizados estão disponíveis na escola e ou na casa
das pessoas que ali trabalham, estudam, trazem seus filhos. Alguns poucos
precisam ser comprados, o que não impede que grandes produções possam ser
realizadas. Utilizam-se sucatas variadas, retalhos de tecidos de
diversos tamanhos, cores e
texturas, roupas e acessórios usados
como chapéus, coletes, cachecóis, bengalas, bolsas. Materiais artísticos das
áreas de Teatro, Música, Dança e Artes
Plásticas em geral, espelhos, objetos descartados de uso
cotidiano, tais como telefones, vidros vazios de perfumes, caixas. Livros de contos, histórias, poesias em
geral. Discos e instrumentos de música
variados, criados ou comprados. Aparelhamentos de som, vídeo, filmagens e
fotos. Imagens fotografadas, pintadas, desenhadas, recortadas. Recursos
diversificados de iluminação.
O
espaço físico precisa propiciar
tranquilidade, privacidade, as portas permanecem fechadas, sem
interrupções da realidade exterior à área de jogo, para que se estabeleça uma atmosfera propícia a um mergulho no
Imaginário, em atividades de criação artísticas em grupo e individuais.
Após
uma hora, em média, de tempo de ateliê, chega-se ao final. Os participantes se
reúnem, novamente, em círculo em torno da caixa mágica, a qual permaneceu todo
o tempo no centro da sala, como testemunha, campo de projeção e catalizador do
Imaginário de todos. Sempre com a mesma música, anteriormente escolhida pelo grupo,
é realizada a dança da roda final e, como no ritual de abertura, o inconsciente
de cada um é notificado que vamos nos retirar da área de jogo, emergir do
mergulho no Imaginário, encerrar nosso ateliê do dia.
Com
alguns grupos, ainda sentados em círculo, avaliamos nosso ateliê, sem
julgamentos de valor sobre as performances de ninguém. Sem obrigatoriedade, cada participante verbaliza as dificuldades e prazeres
experimentados quando realizou ou não as atividades criativas. Pensam juntos maneiras de melhorar a criação
coletiva.
Ao
longo de todo o ateliê apenas uma atitude é obrigatória, estimulada, proposta,
repensada, o esforço de ESCUTA, de si mesmo e do outro, traduzindo um encontro,
respeito e abertura para estar presente, profundamente implicado, compartilhando o aqui e agora do jogo de criação coletiva.
Na
função de professora de Educação Especial, realizamos as atividades pedagógicas,
mediadas por dispositivos artísticos, acima descritas, em ateliês de arte, nas
escolas municipais onde atuamos. Mostram-se acolhedoras para com as diferenças
entre os alunos e profundamente inclusivas. Considero-as como “entre-lugares,
lugares de encontro entre margens, “espaços do possível”, “espaços potenciais”,
conceitos cujos fundamentos teóricos discutiremos brevemente a seguir.
DIFERENÇAS
E ENTRE-LUGARES
“A Arte nos foi dada para não
morrermos da Verdade”
Nietzsche
O
conceito de Outrem
“Há, nesse momento, um mundo calmo e repousante. Surge,
de repente, um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo. Outrem não
aparece aqui como um sujeito, nem como objeto, mas, o que é muito diferente,
como um mundo possível...” (3, p. 28).
Mostafa,
S.P. e Nova Cruz, D.V. em sua obra
explicativa “Para Ler a Filosofia de
Gilles Deleuse e Felix Guattari”, tentativa de nos auxiliar a compreender o
pensamento desses autores, informa ( 7,
p. 27) que, para ilustrar seu conceito de “Outrem”, Deleuse se baseou na
recriação da história de Robson Crusoé, escrita já no século XX, por Michel
Tournier (8), filósofo-romancista francês, nascido em 1924. Esse autor, situou
a ilha onde se desenrola a saga no Pacífico Sul, tropical, quente, portanto.
O Robson Crusoé
original, criado por Daniel Dafoe
em 1719 (2), naufraga na costa do Caribe, e torna-se um vitorioso sobre si mesmo, que, através de seus esforços,
desbravou e transformou num império do tipo ocidental a ilha onde ficou
confinado e que salvou o nativo Sexta-Feira de ser imolado por outros e o
“civilizou”, retornando inclusive com ele para o mundo “civilizado”, quando,
após vinte e sete anos, finalmente, um navio aportou na ilha. Ou seja, um herói
europeu branco e romântico que salva um nativo,
muito provavelmente de pele escura, de si mesmo.
Michel
Tournier, recontou a saga do personagem,
mostrando-o não como um herói, mas como
um náufrago a realizar um esforço imenso para vencer o desejo de se entregar ao desespero da solidão, através
do trabalho disciplinado para conquistar e “territorializar-se” em sua ilha
perdida.
“ Assim, ele tinha tudo de que precisava naquela ilha;
tinha o que comer e beber, uma casa, uma cama para dormir, mas para sorrir não
tinha ninguém (grifo meu), e seu rosto parecia uma máscara gélida (8, p. 43)”.
“...É muito difícil continuar sendo um homem quando não
há ninguém por perto para ajudar...(idem, p. 32)”.
Ainda
segundo as autoras citadas (7, p. 29), Deleuze ( 5, p. 32) traduziu esse mundo
sem Outrem “...como cru e negro, sem potencialidades nem virtualidades: é a
categoria do possível que se desmoronou...Nada além de Elementos... Tudo é
implacável...”
Assim,
num esforço gigantesco, Crusoé reconstrói em sua ilha o único estilo de vida
que conhecia, organizada de modo rígido e milimetricamente determinado.
Nessa rotina, o único descanso que se
permitia era, ocasionalmente, internar-se nas profundezas de uma gruta, onde
permanecia por horas e até dia, recolhido, reconfortado, como no útero de sua
mãe. Voltava para a realidade de sua ilha, até que o cotidiano implacável o
consumisse novamente, levando-o de volta à gruta para refazer-se. Até que, um dia, aparece Sexta-Feira, o “Outrem”, e, com ele, todo um novo mundo possível (7,
p. 29).
Sexta-Feira,
literal e acidentalmente, explodiu a ilha com
reservas de pólvora, restos do naufrágio trazidos pelo mar e que o insano e “civilizado” Crusoé havia
armazenado “para uma eventual
necessidade”. Viram-se, pois, na contingência de reconstruí-la. Mas, agora
havia o “Outrem”, aquele que agrega diferenças, novas propostas, forja novas
identidades. Havia alguém para ajudar, com quem sorrir e continuar a ser um homem.
Tudo
se transforma na reconstrução: a ilha que, segundo Deleuze (4, p. 312), também
é herói na história, tanto quanto os humanos, modifica-se, ganha novos
contornos. Sexta-Feira reassume-se como selvagem e mostra ao europeu Crusoé novas
possibilidades de vida, mais apropriada ao território onde vive, uma ilha
tropical.
“O conceito de outrem, como mundo possível, criado e construído
assim por Deleuze (4, p. 315) assegura as
margens e as possíveis transições (grifo nosso) dessa nova estrutura
possível de existência... Conceito filosófico que se ocupa de um estranhamento,
de uma situação de experimentação de vida, trata de um acontecimento. Uma
possibilidade virtual, retirada do caos
possível, trazida por outrem, atualizada no real, em uma mudança absoluta do
pensamento: viver na ilha, instaurando um novo plano imanente a essa ilha, uma
nova existência para os homens que a habitam, os animais, as plantas e,
principalmente, para o próprio território-ilha. Ilha que se configura pelos movimentos
de territorialização, desterritorialização e reterritorialização que ali se
realizam: Geofilosofia.” (7, p. 31)”
FRONTEIRAS – HIBRIDISMOS - ENTRE-LUGARES
“ALÉM”
“Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é
o ponto a partir do qual algo
começa a se fazer presente.”
Martin Heidegger, "Building, Dwelling,
Thinking"
Os conceitos
desenvolvidos por Deleuze sobre outrem,
territorialização, desterritorialização e reterritorialização, levam-me a ousar
algumas analogias com outro autor, Homi Bhabha, especialmente na Introdução do
livro “O Local da Cultura”, Editora UFMG, Belo Horizonte, 1998. (1, p. 19)
Para Deleuze, encontros,
abertura, margens e transições possíveis
que possibilitem mudanças paradigmáticas
de pensamento e novas existências para os homens e seus lugares de vida
compartilhada. Tudo a partir de experimentação do que foi trazido por outrem,
sugerindo experiências inusitadas,
atualizadas no aqui e agora dos acontecimentos. Bhabha nos propõe novos
conceitos sobre identidades e
fronteiras, e suas possibilidades de ir “além”, de recriar identidades a partir de interstícios
que podem ocorrer em “entre-lugares”, espaços intermediários de circulação, que
favorecem encontros transformadores.
Na recriação da saga “Robson Crusoé”, de Michel Tournier, Sexta-Feira surge como “Outrem”,
aquele que vem trazer novas possibilidades de viver “além”, como definido por
Bhabha
"além não é nem um novo horizonte, nem um abandono
do passado... Inícios e
fins podem ser os mitos de sustentação
dos anos no meio do
século, mas, neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de transito
em que espaço e
tempo se cruzam
para produzir figuras complexas de diferença e identidade (grifo meu), passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.
Isso porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção, no "além": uma movimentação exploratória
incessante, que o termo francês au-dela capta tão bem - aqui e lá, de todos os lados, fort/da,
para Iá e para cá, para a frente e para trás!
” (1, p. 17)
Sexta-Feira e
Robson Crusoé poderiam, portanto,
representar, de acordo com os conceitos de Bhabha,
duas culturas diferentes, que
produziram hibridismos, novas
“...figuras complexas de diferenças e identidades ...” (Idem), pois não
permaneceram entrincheirados em suas fronteiras identitárias. Foram além,
abandonaram as margens onde habitavam e encontraram-se no “entre-lugares” dos
espaços simbólicos da ilha, em movimentos dinâmicos de territorialização, desterritorialização
e reterritorialização , que transformaram e suas existências e o espaço físico
da ilha. Entre-lugares, que são
definidos por Bhabha (Idem, p.20) como:
“ ...aqueles momentos ou processos que são
produzidos na articulação
de diferenças
culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de
subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novas signos de identidade
e postos inovadores de colaboração
e contestação no ato de definir a própria ideia de
sociedade.”
E A
GRUTA ? O ESPAÇO TRANSICIONAL
“Nas margens de todos os rios do
mundo, as crianças brincam “
R. Thagore
Retomando
o personagem Robson Crusoé, agora considerado apenas como um indivíduo que, em
alguns momentos, rompia com sua dura e
solitária rotina de vida, refugiando-se nos fundos de uma gruta, onde
permanecia algum tempo como que regredido, em posição fetal, habitando um
útero, o que lhe restituía um pouco de refazimento e consolo.
O
conceito de “entre-lugares” acima citado, levou-me a pensar no “espaço-potencial”, espaço psíquico, descrito por David Winnicott (10), onde ocorre a negociação entre as duas ordens de
realidade, externa e interna, a qual todo ser humano está, inexoravelmente,
submetido. Espaço de jogo, que se desenvolve
através do balançar e das canções infantis,
na relação primária com a mãe (entenda-se aqui “mãe” no sentido mais
amplo de “maternagem”, o que engloba as
relações que a criança estabelece,
progressivamente, com o pai), onde se iniciam os processos de simbolização, que
são complementados no Imaginário e
permitem ao ser humano dar sentido às experiências que vive. O que o impede de
ser massacrado, porque submetido, pela realidade externa e nela interferir de
maneira criativa e, portanto, transformadora.
Ao
longo da vida, se desde as primeiras interações afetivo-culturais, o
desenvolvimento global do indivíduo vem
ocorrendo de maneira positiva, o espaço potencial continua a expandir-se,
englobando as experiências culturais da Arte,
Religião e Filosofia, as quais constituem tentativas de dar sentido às
experiências sociais desse sujeito.
Seria
possível uma analogia entre os conceitos de
espaço potencial de Winnicott e o de entre-lugares de Bhabha ? Sendo
que, se nestes últimos ocorrem os interstícios entre diferenças culturais, as
quais engendram novos signos
paradigmáticos de identidade, o “espaço potencial” seria o lugar
interno, psicológico onde o indivíduo “negocia” a realidade externa, objetiva,
compartilhada com seus pares humanos e a sua realidade interna, oriunda de suas
experiências afetivas, subjetivas, conscientes e inconscientes.
Trata-se
de um espaço de repouso e jogo, como o brincar das crianças, onde tudo é
possível, do faz-de-conta, no qual o indivíduo mentalmente saudável,
embora consciente da condição de
simulacro, de imaginação do jogo, deixa-se levar em sua fantasia, num
faz-de-conta que leva-o a revisitar seus espaços interiores, carregados de
afetividade positiva. Um movimento que lhe permitiria não somente sobreviver ao
mundo exterior, mas compreendê-lo e transformá-lo.
Para
Robson Crusoé, então, a gruta seria a
metáfora de um espaço-potencial concreto e simbólico de refúgio e repouso mental, onde seria possível se
religar com seus antigos caminhos afetivos interiores. Em seu interior, mesmo
consciente de ser um jogo, ele poderia imaginar-se regredir ao
estado de uma criança pequena, nos braços de sua mãe ou, até mesmo, retornar
para uma visita ao seu útero protetor. Ao emergir do mergulho no imaginário,
Crusoé poderia novamente enfrentar a dura realidade exterior de ser um náufrago
solitário, perdido em uma ilha e isolado do mundo.
O
QUE TUDO ISSO TEM A VER COM ESCOLA ?
COM
A DIFERENÇA NA ESCOLA
COM
A INCLUSÃO NA ESCOLA ?
“E quando o
inesperado chegar, precisamos ser capazes de rever nossas ideias e teorias, em
vez de encaixar o novo fato a fórceps na teoria incapaz de enquadrá-lo”
E.
Morin
Nos últimos vinte anos, na maior parte
da sociedade ocidental, incluindo o
Brasil, intensificou-se a discussão sobre
a escola e suas qualidades. Sobretudo no anos básicos de escolarização, nunca
se questionou tanto sua eficiência como local, não só, de produção de conhecimento, mas de Educação, de formação global de um ser
humano crítico, capaz de pensar o mundo e, até, de contribuir para o
transformar, tornando-o melhor. Resumindo,
a escola tem sido questionada e avaliada intensamente em sua capacidade
de ser inclusiva.
No Brasil, é relativamente recente a discussão da escola ser ou não
inclusiva, com ênfase na inclusão das
pessoas com deficiência. Contudo, na realidade, a discussão engloba fatores que
indicam qualidade de educação para todos os alunos, sem distinção. Intensificou-se
ao longo dos últimos doze anos, em função, da regulamentação da legislação
referente aos compromissos internacionais firmados por nossos representantes,
sobretudo na Guatemala (1999) e, mais recentemente, na ONU (2006) , os quais já
haviam sido contemplados na reforma constitucional de 1988.
Todavia, o “chão da escola”, em nosso
caso pública, vem confirmando que, de fato,
o que acirrou as discussões sobre
a natureza inclusiva de uma escola, foi
a matrícula massiva de pessoas com deficiência em nossas instituições de
ensino.
Como no poético título da obra de Carlo Lepri (5), que trata da inclusão social
das pessoas com deficiência, vieram como
“Viajantes Inesperados” e, sem cerimônias e com o amparo da Lei ,
instalaram-se nos bancos
escolares. Como justificativa para o
título da obra, o autor diz que “...ele parece transmitir uma imagem
poeticamente evocativa da condição humana das pessoas com deficiência” (p. 18).
Apropriando-nos da bela definição, não
poderíamos ampliar a imagem poética para evocar a questão da diferença, de
qualquer tipo, na condição humana? Diferença, que embora inerente, é quase
sempre percebida socialmente como algo inesperado, que provoca estranhamento e
sobre a qual os esquemas fechados de
representações sociais lançam seus tentáculos imobilisantes, procurando
enquadrá-la de tal maneira que, no dizer de Deleuze, em seu livro “Diferença e
repetição”, citado no prefácio por Maria
Tereza Egler Mantoan ( idem, p.
14), ela não pode ser pensada por si mesma.
Na mesma obra, Mantoan afirma, ainda,
que “De fato, as representações são criações, são inventadas para atender a
interesses da ciência, da sociedade, dos poderes que nos controlam, mas a
diferença, como a qualifica Deleuze, é
maldita (grifo nosso), por escapar de qualquer força que a torne finita,
que a restrinja e a sujeite a um modelo.”(idem, p. 14 )
Os “Viajantes Inesperados”, os alunos
com deficiência, que apresentam nada mais
do que diferenças acentuadas, trouxeram , pois, para o âmago da escola a
discussão sobre nossas diferenças, sobre o
normal e o anormal, sobre o direito mesmo de sermos como somos, todos imensamente
diferentes ! Na verdade, nos
presentearam com espelhos, que refletem nossas representações preconceituosas e
obsoletas sobre o outro. Nos obrigam, enquanto profissionais da Educação, equipe escolar como um todo e as
famílias, a abandonarmos as máscaras
atrás das quais habilmente nos escondemos uns dos outros, perseverando a
laborar num modelo de escola, quiçá de
vida, que reproduz saberes, poderes e valores de dominação.
Todavia, como fato dado, cujo direito é
indisponível, a presença de alunos com deficiência vem abalando a mesmice, o
marasmo pedagógico dessa escola
tradicional, elitista e ineficaz,
reintroduzindo de forma intensa
discussões técnicas, éticas e
filosóficas, que nos obriga a sermos criativos e reinventar
métodos, práticas, teorias e, sobretudo, nos obriga a nos enxergar e
ouvir mutuamente, para nos relacionarmos de maneira mais verdadeira e
igualitária.
As reações têm sido apaixonadas ! Temos nos debatido como náufragos e as
atitudes são diversas.
Como na
saga de Robson Crusoé, há aqueles
que reagem ao aluno com deficiência como o Crusoé da versão original
, na qual, ao encontrar Sexta-Feira, inicia um processo para “civilizá-lo”,
ensinando a ele toda a organização europeia que procedeu na ilha, tornando-o um
“integrado adaptado”. Diferente e felizmente,
já existem os profissionais e famílias que, como na segunda versão da
estória, recebem e incluem o “viajante
inesperado”, dá-lhes boas vindas um pouco tímidas, mas plenas de interesse em
saber do que precisa, em ver e ouvir o que ele carrega na bagagem e o que tem a
dizer. Abrem, assim, “espaços do
possível”
Os colegas desses alunos com
deficiência, ao contrário, quanto mais
novos mais facilmente se mostram abertos e colaborativos. É sabido que crianças
transitam muito mais facilmente entre
fronteiras, entre diferenças, pois ainda não há representações sociais cristalizadas. Enquanto educadores, precisamos cultivar atitudes de quem verdadeiramente
entra em relação com o “outrem”, como definido por Deleuze, aqui representado pelo aluno com
deficiência. É necessário propiciar a
todos alunos, indistintamente, oportunidades
de encontros, favorecendo as descobertas das próprias e das diferenças
que permeiam a vida. Para isso, é preciso criar na escola espaços e práticas
pedagógicas que possam funcionar como os “entre-lugares”, propostos por
Bhabha, e estimulem interstícios e
hibridismos culturais e novos paradigmas identitários.
A
ESCOLA QUE SONHO
“A perspectiva
de se formar uma nova geração dentro de um projeto educacional inclusivo é
fruto do exercício diário da cooperação e da fraternidade, do reconhecimento e
do valor das diferenças, o que não
exclui a interação com o universo do conhecimento em suas diferentes áreas.” (6,
p. 9)
Partilhamos da concepção que escola
para todos, inclusiva, adapta-se aos alunos e não ao contrário. Está centrada
nos processos de aprendizagem, nos diferentes modos de aprender.
Funciona como um campo de pesquisa,
onde coexistem obrigações e liberdade de escolha. Onde é possível pesquisar e
descobrir.
Adota currículos abertos, em construção
coletiva, de acordo com os interesses e necessidades dos envolvidos e não há
adaptações para os alunos mais ou menos dotados. Não há hierarquia de valores
entre conteúdos, pois valoriza a construção de conhecimentos acadêmicos e
atitudinais. Nunca, em tempo algum, nem de nenhum modo, adota terminalidade
específica, como norma, para alunos
com deficiência.
Privilegia métodos, práticas e posturas
pedagógicas que respeitem o ritmo de cada aluno e seus singulares modos de se
apropriar do conhecimento; favoreçam a iniciativa pessoal, a pesquisa sobre
assuntos diversificados e os diferentes pontos de vista sobre eles; procurem
estimular o livre debate e a circulação de opiniões. Para tanto, oferece
espaços, materiais, oportunidades e recursos educacionais diversificados, para
que cada um possa se apropriar dos processos de construção de qualquer tipo de
conhecimento de acordo com suas possibilidades pessoais.
A escola inclusiva tem um modo de
gestão coletiva e democrática, pois, sem distinção de idade, raça, gênero ou função, estimula a
participação de todos os atores da comunidade escolar. Todos são responsáveis,
podem e devem oferecer sua contribuição para a contínua melhoria da própria instituição.
Sobretudo, na escola inclusiva os
conflitos e sua gestão são tratados como conteúdos, onde as relações de cooperação e , como dizia
mestre Paulo Freire, a amorosidade são privilegiadas.
Quanto ao bom professor-educador dessa
escola que sonho, faço minhas as palavras da professora Mantoan quando o define
como aquele que ensina a turma toda e declara que considera a educação “...como
uma expressão de amor verdadeiro pelo outro, pois educar é empenhar-se por
fazer o outro crescer, desenvolver-se, evoluir.”(6 p. 5). Seja quem for esse outro, aluno com ou sem
deficiência.
MINHA
CONTRIBUIÇÃO:
POR QUÊ A ARTE COMO
MEDIAÇÃO NO TRABALHO EDUCACIONAL ?
“...os cegos e os poetas enxergam na
escuridão. ”
Chico Buarque de Holanda
Teatro - Conto – Poesia – Música –
Dança
Espaços Possíveis em Educação Comum e Especial
A Educação trabalha com o pensamento e a emoção do aluno, em atividades
que favoreçam o desbloqueio dos entraves que dificultam a aprendizagem,
procurando facilitar um modo global de aprender, que integre o sentir, o fazer
e o pensar. Busca, dessa maneira, um “aprender significativo”, com o
desenvolvimento e expansão do nível de consciência do sujeito, através da sua
participação ativa na construção do conhecimento.
Em defesa de uma Pedagogia da Criatividade, declarou Vygotsky (9) que
para formar alunos ativos e atores em
sua aprendizagem, é indispensável favorecer o desenvolvimento da criatividade e
imaginação, ou seja que a capacidade de simbolização e as funções “imaginativas” sejam estimuladas.
Pela sua própria natureza, atividades de criação artística mobilizam
esses níveis da atividade psíquica. A participação em um ateliê de teatro,
conto, musica, poesia e ou dança favorece, pela prática do jogo e através da ficção, que o sujeito aperfeiçoe sua memória, atenção e concentração, desenvolva
seu raciocínio lógico-matemático, suas capacidades criativas, imaginativas e de
comunicação; descubra ou redescubra o
senso de humor e a possibilidade de sentir prazer.
Requalifica o ser humano, porque contribui para aumentar sua autoestima
e integração social, na medida em que desenvolve sua capacidade de ser
solidário, de respeito, escuta e abertura aos outros. Nesse encontro com o
outro há um movimento duplo, no qual a pessoa, no espaço do “aqui-e-agora” do
jogo, aprende ou reaprende também a descobrir e a ocupar seu próprio espaço no
grupo.
Pela sua natureza intrínseca, a criação artística é uma
aprendizagem que acontece no contexto de experiências que se vive. Vivendo essa
experiência, o aluno pode compreender, com a integralidade do seu ser, o que é
deixar de “existir passivamente” e se tornar “ator”, atuar, dizer, interferir,
modificar, criar.
No caso do Teatro/Dramatização, o ato teatral, implicando a totalidade da pessoa do ator, é metaforicamente uma
“discussão-reflexão-ação” sobre a vida, que se passa no espaço concreto e na
dimensão simbólica do palco. Por isso, depois de uma representação, do ato
simulado de manifestar o outro, o duplo, o alhures no presente e na realidade
do palco, quando o indivíduo, que se torna “individuo-ator”, volta à vida
quotidiana não é mais totalmente o mesmo, podendo assim, enriquecido pela sua
criação e pela interação no grupo de teatro, melhor situar-se na vida em todos
os seus setores, sobretudo na sua condição de ser cognoscente. No processo de criação teatral, a pessoa
recria-se a si mesma, pois no movimento das passagens “pessoa-ator-personagem” trabalha suas dificuldades, dúvidas e anseios através das vivências do
personagem.
A criação, leitura, dramatização
de Contos, enquanto área afim ao Teatro e, igualmente,
recurso mediador de aprendizagem, têm o poder de incitar a imaginação a viver
os tempos fabulosos de ficções que narram as aventuras humildes e maravilhosas
de homens de todos os lugares e de todos os tempos, que procuraram, em cenas
imaginárias, através de seus mitos individuais e coletivos, inventar realidades
para melhor enfrentá-las.
A Poesia, por sua vez, a linguagem pictórica verbal, comum a todos os homens, possui o poder de
guardar “as palavras da tribo”, que ressurgem através da sensibilidade.
Palavras que guardam, como nos contos, o maravilhoso, narrações da vida, que os
ajudam a viver e reviver a infância, para
ganhar energias e assim continuar a sonhar seus atos e serem capazes de
realizá-los.
Ouvir, ler contos e
inventar estórias, é utilizar as palavras para criar um personagem,
constituindo pouco a pouco sua ossatura e sua carne. Num primeiro momento, o
personagem só existe na linguagem, que deve ser suficientemente forte para
dar-lhe vida e, eventualmente, existência própria. Além de propiciar uma
aprendizagem vivenciada e intensiva das estruturas da língua materna do
sujeito, inventar e escrever uma estória, constituindo assim um espaço e vida para
os personagens, é um trabalho psicológico de dar forma criativa a si mesmo, mas
no artifício de uma descrição exterior.
Como mediações no Atendimento Educacional Especializado-AEE em
particular e na Educação em geral, o Teatro, o Conto, a Poesia, a Música e a
Dança são, basicamente, instrumentos de criação de um “espaço do possível” - o
espaço do Jogo. Implica globalmente o
aluno, seu corpo (tão esquecido no universo escolar !) e seu espírito, em uma
aprendizagem do vir-a-ser, um aprender de si, do outro, das coisas da vida. Um
aprender vivendo, indireto, sem ser confrontado às suas dificuldades, mas
através do jogo, na magia da ficção, que fala da pessoa para a própria pessoa,
sem nomeá-la, sem desvelar e, portanto, sem mobilizar máscaras e defesas.
Todos estes diferentes “palcos” de criação artística coexistem num
“outro palco”, “o espaço transicional”, espaço psíquico onde interagem, como
personagens, as vivências interiores e exteriores do sujeito, abrindo as portas
para o imaginário e para a simbolização. Função através da qual ele dá
significado às suas experiências, o que favorece o desabrochar da criatividade
e possibilita intervenções mais criativas no
mundo.
O trabalho educacional com mediação da Arte estimula a criatividade, contribuindo de modo indireto, porquê através
da criação artística, para que o aluno
supere os obstáculos que entravam o pleno uso e brilho de sua inteligência e
bem-estar no mundo.
ARTE E
ENTRE-LUGARES
“Eu gostaria de traçar formas
ou estabelecer situações que estejam como que abertas ...
Meu trabalho tem muito a
ver com um tipo de fluidez, um movimento de vai e vem sem aspirar a nenhum modo
especifico ou essencial de ser.
Usei a arquitetura literalmente como referência, usando o sótão, o compartimento da caldeira e o
poço da
escada para fazer associações
entre certas divisões binarias como superior e inferior, céu e inferno. 0 poço da escada tornou-se um espaço liminar, uma
passagem entre as áreas superior e inferior, sendo que cada uma delas recebeu
placas referentes ao negro e ao branco.”
Renée Green, artista
afro-americana
Na elaboração deste texto, permiti-me
ousar várias analogias entre propostas conceituais que me pareceram próximas.
Ocupou-me, especialmente, o conceito de
“entre-lugares”, espaço de passagem entre margens, que no dizer de Bhabha (1,
p. 22) , interpretando a instalação da artista Renée Green, seria
“A posição
da escada como
espaço liminar, situado no meio
das designações de identidade,
transforma-se no processo de interação
simbólica, o
tecido de ligação que constrói a diferença entre superior e inferior, negro e branco. O
ir e vir do poço
da escada, o
movimento temporal e a passagem que ele propicia, evita que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais (grifo nosso). Essa passagem intersticial
entre identidades fixas abre a possibilidade
de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta:..”
Interessou-me,
particularmente, em função do meu exercício profissional, ao longo dos últimos
quatorze anos, como professora de Educação Especial em rede de escolas
municipais. Isso, devido a maneira como
os alunos com deficiência foram recebidos, e às vezes ainda o são, no ambiente
escolar, o estranhamento que causam, majoritariamente nos adultos, como se
fossem alienígenas pertencentes a outra cultura. Ocorrem reações de profissionais que se
dizem despreparados para trabalhar com “esse alunado”, a preocupação de pais de
alunos “normais e sãos” com a integridade física e as atenções pedagógicos
devidas a seus filhos e outras tantas
desculpas.
Desculpas que, na verdade,
expressam a não aceitação da diferença, reações comuns para com as
minorias, muitas e muitas vezes motivada pelo desconhecimento.
Forçados pela legislação,
no entanto, a conviver com o aluno com deficiência, apesar de ainda encontrar
resistência, venho presenciando mudanças importantes no comportamento das
pessoas adultas, que compõem a
comunidade escolar e seu entorno, sobretudo quando se permitem conhecer,
descobrir as potencialidades desses alunos tão diferentes.
As experiências que vimos
conduzindo dos processos de criações artísticas coletivas, compartilhadas entre alunos com e sem
deficiência, têm sido coroadas de êxito
e revelado, tanto na intimidade do ateliê quanto à comunidade escolar em geral,
capacidades insuspeitadas das pessoas com deficiência, as quais sempre tiveram
suas identidades reduzidas à deficiência que possuem. O êxito a que nos
referimos aqui é aquele verificado na evolução positiva do desenvolvimento
global dos alunos, com ou sem deficiência.
Seria lícito pensar que a
sala de aula da escola regular, onde acontecem os ateliês de criação artística
coletivos, por serem espaços de jogo,
não poderiam funcionar, simbolicamente, como
“entre-lugares” proposto por Bhabha ,
onde “... A passagem intersticial entre identidades fixas [o “normal” e o
“deficiente”- ressalva minha ] abre a possibilidade de um hibridismo cultural
que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta
ou imposta...”(idem) ?
Permito-me propor outra
analogia entre o espaço simbólico do
ateliê de arte, o “entre-lugares” e o
“mundo possível”, quando me reporto, novamente, a Deleuze, com seu conceito do
“outrem” inesperado, aquele que traz na
bagagem o necessário para a construção de novas experiências identitárias, cuja
chegada propicia a abertura de espaço
para um novo “ mundo possível” e assegura “... as margens
e as possíveis transições dessa nova estrutura possível de existência...
Conceito filosófico que se ocupa de um estranhamento, de uma situação de
experimentação de vida, trata de um acontecimento. Uma possibilidade virtual,
retirada do caos possível, trazida por
outrem, atualizada no real, em uma mudança absoluta do pensamento...”. Por sua natureza intrínseca como área de jogo, de criação, o ateliê de Arte
funcionaria, simbolicamente, como um
espaço propiciador de experiências atualizadas no aqui e agora, em vivencias
compartilhadas entre o aluno com
deficiência - o “outrem”, o “viajante inesperado ” - seus
colegas sem deficiências acentuadas e os profissionais. Experiências que
propiciariam “mudanças absolutas de pensamento”.
Finalmente, como já feito
alhures, em minha dissertação de fim de
curso para o diploma de “Maitrise”
en “Arte em Therapie et em Psychopedagogie”,
(Université Rénè Descartes-Paris V, Paris, 1998), permito-me, ainda, atualizar e
associar às outras analogias,
o espaço simbólico do ateliê de
Arte ao conceito de “espaço potencial” de Winnicott. Devido à natureza dos movimentos psicológicos
dos sujeitos implicados na criação artística, a área de jogo do ateliê de Arte
seria, a representação concreta do
“espaço transicional”, outra denominação dada pelo autor para o “espaço
potencial” , no qual a pessoa pode atualizar
continuamente as negociações entre a sua realidade interna e aquela externa,
compartilhada por seus pares humanos. Atividade psíquica à qual estamos
condenados realizar eternamente, que, ao
mesmo tempo, testemunha e preserva nossa
saúde mental, ligada à capacidade de simbolizar as experiências vividas pelo sujeito e conferindo-lhes
sentido.
O “espaço transicional ou
potencial” do ateliê , local de criações
artísticas coletivas em Teatro, Conto, Poesia, Música e Dança, é uma área de jogo, que propiciaria repouso
mental e onde os alunos poderiam,
através da ficção e das vicissitudes das
experiências imaginárias dos personagens, preservar e atualizar a saúde
mental, tutora da afetiva, cognitiva e
relacional, o que contribuiria
par abrir espaços de abertura pessoal
para acolher as diferenças e construir mundos do possível.
Espaço possível, transicional ou potencial,
entre-lugares, onde ocorrem
negociações, movimentos intersticiais,
úteros geradores de novas e complexas
identidades híbridas, culturas além,
irrepresentáveis, novas
representações do “outrem” e novas
formas de vida. Tudo a ver com o caos, o
desconstruir, com criar e com
o fazer Arte !!!!
Para terminar, queremos homenagear as crianças e os adolescentes,
meus alunos que “Compreendem” tudo, mas tudo mesmo que foi aqui escrito, com um
poema de Maiakovski :
GAROTO
Fui agraciado com o amor sem limites.
Mas, quando garoto,
a gente preocupada trabalhava
e eu escapava
para as margens do rio Rion
e vagava sem fazer nada.
Aborrecia-se minha mãe:
“Garoto danado!”
Meu pai me ameaçava com o cinturão.
Mas eu,
com três rublos falsos,
jogava com os soldados sob os muros.
Sem o peso da camisa,
sem o peso das botas,
de costas ou de barriga no chão,
torrava-me ao sol de Kutaís
até sentir pontadas no coração.
O sol se assombrava:
“Daquele tamaninho
e com um tal coração!
Vai partir-lhe a espinha!
Como, será que cabem
neste tico de gente
o rio,
o coração,
eu
e cem quilômetros de montanhas ?”
Mas, quando garoto,
a gente preocupada trabalhava
e eu escapava
para as margens do rio Rion
e vagava sem fazer nada.
Aborrecia-se minha mãe:
“Garoto danado!”
Meu pai me ameaçava com o cinturão.
Mas eu,
com três rublos falsos,
jogava com os soldados sob os muros.
Sem o peso da camisa,
sem o peso das botas,
de costas ou de barriga no chão,
torrava-me ao sol de Kutaís
até sentir pontadas no coração.
O sol se assombrava:
“Daquele tamaninho
e com um tal coração!
Vai partir-lhe a espinha!
Como, será que cabem
neste tico de gente
o rio,
o coração,
eu
e cem quilômetros de montanhas ?”
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BHABA, (H.) : O Local da Cultura – Editora UFMG, Belo Horizonte, 1998
2. DAFOE, (D.) : Robson Crusoé: a aventura de um náufrago numa ilha deserta – Companhia das
Letrinhas, São Paulo, 2006
3. DELEUSE, (G.) , GUATTARI, (F.) : O que é Filosofia - Editora
34, São Paulo, 1997
4. DELEUSE, (G.) : Lógica do sentido - Perspectiva,
São Paulo, 2007b
5. LEPRI, (C.): Viajantes Inesperados – Saberes Editora, Campinas, Sp, 2012
6.
MANTOAN (M.T.E.): Inclusão escolar: O que é? Por
quê? Como Fazer? – Moderna, São Paulo, 2008
7. MOSTAFA, (S.P.), NOVA CRUZ, (D.V.): Para ler a Filosofia de Gilles Deleuze e
Félix Guattari - Alínea Editora,
Campinas, Sp, 2009
8. TOURNIER, (M.) : Sexta-Feira ou a vida selvagem – Bertrand
Brasil, Rio de Janeiro, 2001
9. VYGOTSKY, (L.S.): Imaginação e criatividade na infância – SMF
Martins Fontes, São Paulo, 2014
10. WINNICOTT,
(D.)
Jeu
et Réalité: l’espace potentiel – Gallimard, Paris, 1975
O brincar e a realidade - Imago, Rio de Janeiro, 1975
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Nossas
reflexões sobre a Arte como mediação no trabalho pedagógico, e as práticas daí
decorrentes, foram inspiradas, entre outras, em leituras de artistas, que nos fizeram
generosamente parte de suas ideias e
experiências afetivo-emocionais, implicadas nos processos de criação
artística. Assim, citando apenas alguns,
muito nos enriqueceram as propostas de C. Stanislavsky sobre o trabalho
do ator e a construção de personagens,
bem como as narrativas de experiências no Teatro de C. Dullin. Esses relatos
muito nos auxiliaram a compreender a complexidade dos processos psicológicos
implicados no trabalho de criação e, portanto, os riscos e benefícios
decorrentes do uso de dispositivos artísticos em ambiente escolar.
Outros artistas, já
dedicados a utilizar de sua arte em contextos psico-sócio-educativos,
nos brindaram com reflexões e proposições metodológicas que nos foram sumamente
importantes ao longo de nossa pratica profissional, nas áreas do Conto, Poesia,
Música e Dança. São eles, J.P. Ryngaert, que muito trabalhou nas escolas
francesas com Jogo Dramático ou Dramatizações e a imensa contribuição de
G.Jean, o qual levou os Contos e a Poesia para instituições diversificadas de
Saúde e Educação. E. Lecourt muito nos
ensinou sobre o potencial da Musica, tocada ou cantada, no trabalho com pessoas com deficiências graves.
Bailarina e psicóloga, não poderíamos deixar de citar F.Schott-Billmann, nossa
orientadora na Universidade de Paris, que nos ensinou, com muito rigor, as
propriedades equilibrantes, para os seres humanos, dos rituais, cantos e danças
coletivos, praticados sob o comando de xamãs e desde tempos imemoriais, pelas sociedades tradicionais. Praticas ancestrais, cujas virtudes curativas,
educativas e preventivas em saúde mental estão,
atualmente, sendo cientificamente
estudadas nas mais prestigiosas academias.
S. Freud, C.Levi-Strauss, D. Oberlê, C.R. Rogers, R.
Courtney, D. Winnicott, L. Vygotsky, pesquisadores
de diferentes áreas e filósofos, que se ocuparam em refletir sobre a capacidade
de simbolização, a Arte, a Teoria do
Jogo ( no sentido do brincar), da Criatividade e da Imaginação e suas relações
com a saúde, o desenvolvimento humano e seu bem-estar no mundo, contribuíram de
maneira decisiva para que compreendêssemos a sua importância no trabalho com
seres humanos, sobretudo em situação de fragilidade.
Não podemos não nos referir ao Mestre Paulo Freire, com
suas ideias fundamentais sobre a eficácia da amorosidade, do diálogo e da
autonomização em qualquer prática pedagógica.
No intuito de contribuir para aqueles que desejem
aprofundar alguns conceitos e práticas, preparamos a pequena bibliografia abaixo:
COURTNEY
(R.): Jogo, teatro e pensamento –
Perspectiva, São Paulo, 1981
DULLIN (C.): Souvenirs et notes de travail d’un acteur – Odette Lieutier, Paris, 1946
FOUCAUT
(M.): Os corpos dóceis in Vigiar e Punir- Editora Vozes, Petrópolis, 2002
FREIRE
(P.): Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa – Paz e Terra, São Paulo, 2002
FREUD (S.):Totem et tabou – pbp, Payot, Paris 1996
JEAN (G.): Le pouvoir des contes – Casterman, Tournai, 1990
LECOURT (E.): La musicothérapie – Cesura, Lyon, 1989
LEVI-STRAUSS
(C.): “A eficácia simbólica” in
Antropologia Estrutural, I, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1973
OBERLE
(D.): Créativité et jeu dramatique -
Méridiens Klincksieck, Paris, 1989
ROGERS
(C.R.) : Por uma teoria da criatividade in
“Tornar-se pessoa” – Martins Fontes Editora, São Paulo, 1968
RYNGAERT
(J-P.): Le jeu dramatique en milieu scolaire –
Editions Universitaires, De Boeck Université, Bruxelles, 1991
SCHOTT-BILLMANN (F.) : Quand la danse guérit – La Recherche en Danse, 1997
STANISLAVSKY
(C.):
A preparação do ator – Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1968
A construção do personagem – Civilização Brasileira,
Rio de Janeiro, 1976
VYGOTSKY, (L.S.): Imaginação e criatividade na infância –
SMF Martins Fontes, São Paulo, 2014
WINNICOTT
(D.) :
Processus de maturation chez l’enfant –
Payot, Paris, 1970Jeu et Réalité: l’espace
potentiel – Gallimard, Paris, 1975
O brincar e a realidade - Imago,
Rio de Janeiro, 1975
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